vendredi 20 février 2009

Volver



Mery Wolff - Membro Efetivo da SPPA

Acabamos de assistir a mais um dos belíssimos filmes de Almodóvar.
O filme todo transita entre o real e o fantasmático, entre a sanidade mental e a doença, fazendo uma referência importante de que o limiar entre estes dois mundos é muito tênue e que podemos muito facilmente estar num ou noutro pólo.
Como os demais filmes deste diretor, é uma obra sensível, cheia de simbolismos e que retrata a alma feminina com maestria.
Já no início, o forte vento que traz as folhas de volta aos túmulos nos reporta ao nome do filme .... Volver ... voltam as folhas, voltam as lembranças dos entes queridos que se foram e também voltam os fantasmas de relações insatisfatórias não elaboradas.
E Almodóvar segue anunciando nas entrelinhas o drama em que vivem estas mulheres.
Três gerações que vivem conflitos muito intensos. Estes, ao não serem elaborados, persistem como fantasmas assombrando suas vidas.
Almodóvar costuma abordar em seus filmes com muita propriedade os conflitos entre mães e filhas. Este tema é muito familiar em psicanálise. Busca de identificação da menina para com a mãe entremeada pelos conflitos edípicos e colorida por sentimentos primitivos de inveja constituem-se num caldo de cultura que favorece o surgimento de dificuldades para a constituição da feminilidade bem como para o estabelecimento de uma relação afetiva menos comprometida por conflitos.
Os sentimentos que povoam o universo feminino são muito bem abordados neste filme e em seu decorrer Almodóvar vai construindo a trama que parte destas relações precoces comprometidas:
- as dificuldades na relação de Raimunda com a mãe; a não percepção pela mãe de Raimunda do assédio sexual do pai que culmina com uma gravidez. Esta situação provavelmente gerava na então menina intensos sentimentos de desamparo e ódio em relação à mãe , incapaz de protegê-la dos ataques do pai e de seus próprios sentimentos edípicos. Infelizmente esta situação é bastante presente em nosso dia-a-dia e demanda um trabalho profundo.
- como conseqüência desta relação Raimunda se afasta da mãe e busca a tia como objeto continente
- relação intensa entre a irmã de Raimunda com a mãe que, provavelmente, excluem-na.
Estas vivências infantis traumáticas permanecem fazendo parte do imaginário inconsciente destas mulheres na espera de elaboração.
Raimunda, ao engravidar, se afasta da família indo para Madrid e encontra um parceiro que assume seu filho.
Mas os traumas não elaborados se tornam fantasmas que esperam poder retornar, assim como a mãe de Raimunda vivendo nas sombras após sua pretensa morte cuidando da irmã, da alimentação de suas filhas e de si mesma, na espera de poder voltar – Volver.
O mesmo drama que povoava o inconsciente de Raimunda reaparece no assédio de Paco para com Paula. Esta, talvez por possuir uma relação com a própria mãe um pouco mais bem elaborada, é capaz de dar um outro destino em sua vida. Um destino pesado mas que encontra suporte na mãe, algo que a própria Raimunda não encontrou.
Ao ajudar a filha apoiando-a e tentando dar um destino menos perturbador ao marido morto Raimunda vai elaborando seus próprios fantasmas. Esta elaboração gradativa aparece na construção que Almodóvar vai fazendo no filme pela possibilidade do reaparecimento da mãe, primeiro para Sole depois para Paula e por último para Raimunda.
A busca de trabalho que Raimunda faz alude ao contato com o real, fundamental para a manutenção da saúde mental e, ao mesmo tempo, mais uma vez leva-a a VOLVER ao passado através da música, mais um momento em que Almodóvar assinala uma possibilidade de reelaboração dos vínculos primitivos mãe-filha.
Após este reencontro Raimunda resiste a aceitar a mãe. E aí novamente o bom vínculo de Paula com Raimunda é capaz de promover este reencontro.
O retorno das mulheres para sua cidade natal, passando pelo local em que Raimunda enterrou Paco, mostra como esta elaborou internamente de uma forma afetiva, positiva e respeitadora esta relação conturbada levando-o de volta para um local apreciado pelo ex-marido. É assim que Almodóvar entende que se elaboram os dramas humanos.
Nesta volta as duas mulheres retomam seus fantasmas do passado: o assédio do pai para com Raimunda, a incapacidade de a mãe perceber, a gravidez de Raimunda, a fuga dela da vila e os conseqüentes sentimentos de mágoa, raiva e tristeza que assombravam o mundo interno destas mulheres.
Em várias cenas no decorrer do filme Almodóvar foca a câmara nos corpo de Raimunda, mais detidamente nos seios, assinalando os aspectos sedutores da personagem. Mais para o final, numa conversa a mãe pergunta à Raimunda se sempre teve estes seios. Neste momento confirma-se mais uma vez o que assinalei anteriormente: os sentimentos que transitam na relação mãe-filha e que podem interferir no estabelecimento de um vínculo satisfatório. O corpo feminino como objeto de desejo e, ao mesmo tempo, de comércio também é assinalado na personagem da vizinha prostituta.
Nesta oportunidade Almodóvar expõe mais claramente os meandros desta relação tão conflituada entre Raimunda e sua mãe e que foi sendo pontuada nas entrelinhas durante o filme: o assinalamento de que os olhos de Paula lembram o olhos do avô é um exemplo disso.
Poder colocá-los em cena, falar sobre eles é o caminho para torná-los menos atemorizadores, enfim, para elaborá-los.
Para encerrar quero ressaltar duas questões que me parecem as mais importantes deste filme. Em primeiro a questão da transgeracionalidade e a importância de dar acesso aos fantasmas do passado como o único meio de elaborar estes sentimentos tão penosos que interferem na vida das pessoas ao povoarem o inconsciente e só aparecer “na calada da noite” assombrando o nosso psiquismo. A outra questão que também me parece que foi abordada de uma forma muito sensível por Almodóvar é a questão do abuso sexual doméstico. Vemos no filme como, ao ficar escondido, ele tendeu a repetir-se numa outra geração. E aí o autor aborda um tema muito relevante e que merece um cuidado especial por parte da sociedade.
O abuso sexual doméstico é mais comum do que imaginamos. E só poderemos abordá-lo se não permitirmos que fique escondido como um fantasma à espreita de voltar. Para isso temos que poder encará-lo; com respeito, com cuidado, com afeto....., como vimos no final do filme.
Este filme, pela riqueza simbólica, pela beleza de imagens e pela temática instigante, nos permitiria ficar horas e horas conversando e ainda assim talvez não abarcássemos toda sua complexidade. Espero ter tocado em alguns pontos que permita-nos seguir debatendo mais um pouco.


* Filme de Almodóvar, apresentado na Casa de Cultura Mário Quintana, em 13 de julho de 2007


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