Entrevista concedida, em 04 de outubro de 1996, ao membro da Comissão de Redação Raul Hartke
O Dr. Jean Laplanche é analista titular, ex-presidente da Association Psychanalytique de France e professor honorário de Psicanálise na Sorbonne - Universidade de Paris VII.
É o diretor científico e responsável pela terminologia da tradução francesa das Obras Completas de Freud e autor - juntamente com Pontalis - do internacionalmente reconhecido "VOCABULÁRIO DA PSICANÁLISE". Seu profundo conhecimento e capacidade de rigorosa reflexão crítica sobre o pensamento freudiano podem ser constatados nos cursos que ministrava na Universidade, transcritos na coleção "PROBLEMÁTICAS". Além disso, a originalidade e criatividade do seu pensamento evidenciam-se em sua "Teoria da sedução generalizada".
As seguintes obras suas estão traduzidas para o português:
1. Halderlin e a Questão do Pai (1961), Jorge Zahar Editor.
2. Vocabulário da Psicanálise (em colaboração com J.B.Pontalis) (1967). Editora Martins Fontes.
3. Fantasia Originária, Fantasias das Origens e Origens da Fantasia. (em colaboração com J.B. Pontalis) (1967), Jorge Zahar Editor.
4. Problemáticas I (1980): A angústia, II (1980): Castração/Simbolizações, III (1980): A sublimação, IV (1981): O inconsciente e o Id, V, (1987): A tina, Editora Martins Fontes.
5. Vida e Morte em Psicanálise (1985), Editora Artes Médicas.
6. Novos Fundamentos para a Psicanálise (1987), Editora Martins Fontes.
7. Traduzir Freud (em colaboração com Cotet e Bourguignon) (1989), Editora Martins Fontes.
8. Teoria da Sedução Generalizada (1988), Editora Artes Médicas.
De formao inicialmente filosófica, o Professor Laplanche analisou-se com Lacan e posteriormente cursou Medicina.
Além de eminente psicanalista, Jean Louis Laplanche é um conceituado produtor de vinho, proprietário de um renomeado "domaine" na regi?o da Borgonha. Seu vinho, o "Cháteau de Pommard", está incluído entre os grandes tintos da França.
O Dr. Laplanche teve a gentileza e disponibilidade para conceder esta entrevista ao Dr. Raul Hartke, representando, então, a Revista, no seu belíssimo Cháteau, em Pommard, próximo à cidade de Beaune, justamente num momento importante da vinificação.
A psicóloga Leonor Guiromand auxiliou na tradução durante a entrevista.
Previamente ao encontro, a Revista lhe enviou as seguintes questões, sublinhando que ele poderia responder quais e na ordem que desejasse, ficando, também, totalmente aberta a possibilidade de outros tópicos serem levantados e desenvolvidos no transcorrer da entrevista:
1 - Conhecemos e estudamos o Prof. Laplanche, tradutor fundamental de Freud, incluindo uma obra especificamente sobre esse tema. Conhecemos também o Prof. Laplanche, exegeta de Freud, tanto, por exemplo, no "Vocabulário da Psicanálise" como na série "Problemáticas", na qual, como o próprio Professor gosta de destacar, o criador da Psicanálise é "posto a trabalhar". Conhecemos e estudamos, finalmente, o Prof. Laplanche como autor psicanalítico, com sua teoria da sedução generalizada que proporia, inclusive, novos fundamentos para a Psicanálise. Levando em conta todo esse seu cabedal de pesquisa, estudo, reflexão e criação, nós o consideramos uma das pessoas mais indicadas para perguntar sobre o que o Sr. considera como sendo os principais desafios quanto à teoria e quanto à prática psicanalíticas nesta virada do século?
2 - Ainda dentro do espírito da pergunta anterior, ocorreu-nos que, no próximo ano-1997- estaremos comemorando o centenário do desaparecimento (manifesto) da "neurôtica" (a teoria da sedução) e do aparecimento do complexo de édipo, transição essa muito bem dissecada pelo Sr. Como o Sr. considera que está a situação do complexo de édipo, cem anos depois? Levando em conta sua teoria da situação e da sedução originárias, esse complexo ainda continuaria sendo "o complexo nuclear das neuroses" O "édipo" que circula atualmente nos textos psicanalíticos é ainda o mesmo de cem anos atrás? A situação edípica precoce descrita por Melanie Klein constituiria apenas um importante acréscimo à teoria do édipo freudiano ou envolveria, como pensa, por exemplo, Willy Baranger, uma mudança de um aspecto central de toda a teoria do criador da Psicanálise, por confundir, por exemplo, aquilo que é uma prioridade cronológica com uma preeminância na determinação, uma prioridade lógica, pois, segundo esse autor, na ordem lógica, a situação triangular antecede à situação dual.
3 - Numa revisão de 1993 sobre a psicossexualidade e a diferença entre os sexos, no livro "The Gender Conundrum" (Editora Routledge, London & New York), Dana Breen diz, a certa altura, que a nosso de Nachtrachlichkeit, envolvendo uma reestruturação psíquica retrospectiva, a partir do complexo de édipo e da castração, marca uma diferença essencial na concepção geral da Psicanálise entre grande parte dos psicanalistas franceses em relação aos anglo-saxões, esses últimos ligados a uma concepção progressiva linear do desenvolvimento psíquico. Já que o Sr., junto com Pontalis, é um dos responsáveis pela divulgação desse importante conceito resgatado por Lacan da obra de Freud, gostaríamos de saber qual seu ponto de vista sobre essa afirmação. Essas possíveis diferenças conceituais, caso fossem tão fundamentais (a ponto de originar concepções distintas da Psicanálise como um todo), teriam repercussões decisivas na prática clínica? Estaríamos diante de diferentes "modelos" de um mesmo paradigma ou de distintos paradigmas, se é que esse conceito de Khun é aplicável à Psicanálise?
4 - O tema oficial do próximo congresso da IPA, em Barcelona, será a sexualidade e consideramos que o Sr. tem coisas muito importantes para dizer a respeito dessa questão. Recentemente, num artigo publicado no IJPA, intitulado "Has sexuality anything to do with psychoanalysis?" (1995), Dr. André Green disse que a sexualidade, considerada por Freud como central no desenvolvimento psíquico, na teoria psicanalítica e no trabalho clínico, tem sido negligenciada pela Psicanálise atual e que, inclusive, o conceito atual de sexualidade não é o mesmo de Freud. Qual o seu ponto de vista a esse respeito?
5 - O Sr. considera possível uma "teoria clínica" psicanalítica que dispense a "bruxa" metapsicologia?
6 - No livro "Novos Fundamentos para a Psicanálise", o Sr. diz que "a situação analítica instaura uma relação originária com o enigma e com o seu portador" e que, nesse contexto, o essencial é a recusa do analista "do saber" e "de saber", sendo esse o motor que propulsiona o tratamento, pois "é a corrida atrás do saber que sujeita e propulsiona o analisando assim como propulsionou a criança".
Donald Meltzer dê uma importância central, no desenvolvimento humano, ao que ele denomina de "conflito estático", envolvendo a admiração pelo exterior do objeto, diretamente acessível aos sentidos, versus seu interior enigmático, que só pode ser apreendido mediante a imaginação. Esse conflito mobiliza tanto o desejo de conhecer, preservando a liberdade do objeto, como o desejo de possuí-lo ou de violá-lo.
O Sr. veria alguma relação ou alguma possibilidade de articulação de suas idéias acima referidas com o "conflito estático" de Meltzer?
No início da entrevista, realizada no dia 4 de outubro de 1996, o Dr. Laplanche disse que é, ao mesmo tempo, vinicultor e psicanalista e que, no momento, se encontrava em plena atividade de fabricação de seu vinho.
RH - Gostaríamos de lhe agradecer imensamente por nos haver recebido e dedicado um espaço de seu tempo num momento tão importante de suas atividades como vinicultor.
JL - Com efeito, este é um momento de muito trabalho e, sobretudo, porque aqui sou eu mesmo quem faz tudo.
RH - Nós já ouvimos falar muito do seu vinho, o Cháteau de Pommard.
JL - Após a entrevista vocês irão ver um pouco de tudo isso comigo.
RH - É um prazer poder estar aqui e fazer esta entrevista porque o Sr., utilizando uma expressão sua, é um objeto-fonte para nossa atividade diária como psicanalistas e para nossas reflexões teóricas.
No caminho, vindo em direção à sua propriedade, eu pensava numa temática que o senhor aborda muito seguidamente - a questão da teoria da sedução - e dei-me conta de que estamos atravessando um aniversário do período mesmo dessa mudança, pois, no dia 21 de setembro, Freud enviou a carta a Fliess dizendo que havia abandonado sua "Neurotica" e, no dia 15 de outubro, como, aliás, o senhor sublinha, escreveu-lhe a respeito da descoberta do complexo de édipo. Estamos, então, aqui com o Sr., exatamente nos dias correspondentes a essa profunda e decisiva virada no pensamento freudiano.
JL - (Risos) É muito divertido porque, com efeito, estamos na época do equinócio de outono e eu nasci no solstício de verão. Sendo assim, nasci nove meses após o abandono da teoria da sedução, ou seja, fui concebido - isto é obviamente, uma fantasia* - no momento do abandono da teoria da sedução. Nasci no dia 21 de junho, portanto, nove meses após. (Risos).
RH - Uma outra coisa que me pareceu curiosa e interessante é que alguém como o senhor, conhecedor profundo da "bruxa metapsicologia"**, trabalhe igualmente a terra. Lembro-me da passagem do Fausto de Goethe, quando Mefisto sugere a Fausto cultivar a terra ou então procurar a bruxa. E, neste momento, estamos junto a alguém, o Sr., que conseguiu conciliar a "bruxa" e o trabalho da terra. (Risos).
JL - (Risos) Mas o senhor verá daqui há pouco que minhas tinas, onde faço o vinho, são, de certa forma, como o caldeirão da bruxa. (Risos).
RH - Eu gostaria, agora, de ouvi-lo sobre algumas das perguntas que lhe enviamos a titulo de sugestão para um início de diálogo.
* Laplanche emprega aqui a palavra francesa "fantasme". Ver o comentário sobre a tradução desse termo do alemão para o francês no verbete "fantasia", do Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, Editora Martins Fontes, 2a edição, 1991. (N. do R.).
** Alusão a "Fausto" de Goethe na cena intitulada "Na cozinha da Bruxa". A partir dela Freud estabelece uma analogia entre a metapsicologia e a bruxa. Fausto, já com setenta anos, gostaria de remoçar. Mefisto propõe-lhe, inicialmente, levar uma vida simples de agricultor no campo, mas Fausto rejeita essa proposição. Mefisto responde-lhe: "Pois venha então a bruxa, amigo". A bruxa prepara-lhe uma poção mágica, Fausto a ingere e, dessa forma, recupera sua juventude. (N. do R.).
JL - Sim. Eu examinei o primeiro ponto das questões que me foram enviadas, a respeito do desafio para a virada do século. Para mim, existem dois desafios, o prático e o teórico e os dois estão ligados. Entendo o desafio prático da seguinte maneira: a Psicanálise está a perigo de tornar-se uma profissão de saúde. Isso significa estar subordinada ao poder institucional, tanto ao poder institucional das organizações de saúde quanto ao poder institucional das associações psicanalíticas. Acredito que o perigo está também no risco de que as associações de Psicanálise se tornem uma transmissão das demandas sociais de saúde. Isso se observa tanto em relação à prática quanto á formação. Vê-se, cada vez mais aqui na Europa, mas também em outros países, que a prática está subordinada à obrigação de resultados sintomáticos de saúde. O pagamento das curas torna-se cada vez mais um pagamento em função da intervenção de um juiz, poder-se-ia dizer, que julga se o resultado é ou não é bom. Isso significa dizer que a relação psicanalítica não é mais entre dois, existindo um terceiro que intervém, porque paga, porque pede certificados, etc. E afinal, é preciso que se diga - e eu direi as coisas francamente - para resultados socialmente reconhecidos há técnicas mais eficazes que a Psicanálise. A Psicanálise não pode combater baseada no plano do resultado social e da adaptação, mesmo porque, naquilo que diz respeito à adaptação - repito - há muitas técnicas mais eficazes do que a Psicanálise.
Outro perigo, ainda sob o ponto de vista da prática, é que, em função dessa demanda social, a formação enquanto tal se torne uma formação que deve ser aceita e reconhecida pelas instituições. Mesmo a Psicanálise pessoal, que é o fundamento da formação analítica, tende a tornar-se cada vez mais alguma coisa de institucional: é o que se chama de análise didática (training analysis) e eu tenho-me batido, há dezenas de anos, contra a própria idéia de "training analysis". Nós somos, acredito, a única Sociedade que suprimiu completamente a idéia de "training analysis", ou seja, uma análise empreendida e aceita pela instituição. Na medida em que a sociedade psicanalítica deve aceitá-la, ela deverá, também, mais cedo ou mais tarde, prestar contas à instituição estatal. Na nossa Associação, que se opõe completamente às regras da IPA - embora estejamos na IPA - tomamos, então, uma posição radical em relação a esse ponto de vista, ou seja, suprimimos completamente a Psicanálise didática. Para nós a Psicanálise, seja ela de formação ou de cura, é uma coisa puramente pessoal, que deve ser empreendida de maneira absolutamente pessoal, sem a intervenção da instituição em nenhuma instância.
Acredito que, atualmente, fora dessa questão um pouco técnica, o grande perigo para a Psicanálise é aquele de ser confundida com uma técnica psicoterapêutica. Na minha opinião é o primeiro desafio que traz o risco de suprimir a Psicanálise, mesmo que o nome subsista. O nome provavelmente subsistirá, mas a coisa não, ou seja, os verdadeiros psicanalistas serão forçados a encontrar um outro nome. Na Europa vemos muito disso, mas acredito que, sob outras formas, também na América do Sul e, sob outras formas ainda, nos Estados Unidos. Na Europa, a institucionalização caminha muito rapidamente: vê-se isso na Alemanha, na Holanda, etc. A França é um dos raros países onde a Psicanálise permanece uma profissão que não é verdadeiramente uma profissão, uma profissão não reconhecida enquanto tal. Isso é tudo para rapidamente dizer qual é o desafio prático o qual, acredito, é o maior desafio e que não sei como vamos ultrapassar.
Agora, naquilo que diz respeito à teoria e é metapsicologia eu, diria que, efetivamente, o desafio é de extrair todas as conseqüências da experiência freudiana e, a partir daí, renovar a teoria. É o que procurei fazer com a teoria da sedução.
RH - Colocar Freud a trabalhar, como o senhor tanto gosta de dizer...
JL - Sim, eu acredito que é, inicialmente, fazer trabalhar Freud, mas há um momento em que já se fez com que Freud trabalhasse bastante e, então, é preciso trocar as coisas, não é assim? Acredito que uma noção como a de "mensagem" substitui a noção de "representação", que a noção de "outro" tomou o lugar da de "objeto" e que o primado do outro, na constituição do sujeito sexual, é algo que faz uma revolução no pensamento de Freud.
RH - Seria possível falar um pouco mais a respeito dessa substituição da noção de "representação"?
JL - A noção de representação permanece uma noção subjetiva ligada à idéia do primado do sujeito, ou seja, em última instância, uma noção solipsista : não saímos da pessoa que "se" representa alguma coisa. Freud nào saiu dessa noção de representação.
Acredito que a perspectiva muda completamente, a partir do momento em que pensamos que aquilo que acontece ao sujeito não são somente percepções e representações, mas "mensagens" significativas vindas do outro.
RH - Isso estaria incluído na sua teoria da sedução generalizada?
* No original: "des traces".
JL - Sim. Se quiser, podemos também tomar o exemplo da diferença entre "traço"* e "mensagem". Robinson (Cruso?), na sua ilha, vê passos na areia: são traços, são representações. Podem ser tanto traços de um homem como de um animal ou mesmo traços de um meteorito: são representações. Nós ficamos, então, numa situação que eu chamo de ptolomaica, ou seja, na qual Robinson se considera como o centro do mundo: ele deve interpretar os signos. Mas, ao contrário disso, se ele vê que as impressões* de passos estão organizadas para indicar uma direção, nesse momento, não se trata mais de traços mas, sim, de mensagens. E aquilo que a criança e o ser humano devem interpretar não é um mundo abstrato de percepções e de representações, é um mundo de mensagens, onde já há sentido que é enviado pelo outro. É o que chamo de "reversão copernicana da perspectiva"**, ou seja, do mesmo modo que Copérnico compreendeu que a terra rodava ao redor do sol e não o sol ao redor da terra, o ser humano deve compreender que ele se move ao redor do outro e não que o outro é, pura e simplesmente, sua percepção.
Gostaria de falar de Melanie Klein, porque, num certo momento, vocês se referem a ela. Ela também, como Freud, fica num mundo subjetivo, ou seja, quando fala do objeto, esse objeto é um objeto "para" a criança: ele é bom ou ele é mau, porque a criança projeta sobre ele suas pulsões boas ou más, mas não há a idéia de que entre a criança e o adulto não existe objeto, mas, sim, mensagens. Os objetos são enviados para dizer alguma coisa, os objetos já estão cheios de significação, são os significantes ou as mensagens. Em Freud, tanto quanto em Melanie Klein os objetos estão sempre colocados em rela??o com a "minha percepção" do objeto. Em outros termos, o próprio Freud ficou na antiga tradição européia da filosofia que também é a do sujeito, na centralização no sujeito, filosofia de Descartes, de Kant e de tantos outros. Mesmo para os fenomenólogos, é sempre o mundo que é "minha representação". Ora, eu digo, o mundo não é somente minha representção - e eu não nego que existam representações - mas o mundo é habitado por mensagens que comportam sentido antes que eu tenha necessidade de dar-lhes sentido.
RH - ...E que vão provocar, em mim, a necessidade de um trabalho de tradução...
* No original: "les empreintes".
** O último livro publicado pelo Dr. Laplanche, ainda não traduzido para o português, intitula-se "La révolution copernicienne inachevíe" (Editora Aubier, 1992).
JL - Certamente e isto é a parte da tradução na teoria da sedução. Ou seja, a teoria da sedução comporta também um aspecto que é uma tentativa de dar conta do recalcamento, uma tentativa de compreender o recalcamento como resultante de um trabalho justamente de tradução das mensagens do outro e de uma tradução que é imperfeita, que deixa restos não traduzidos.
RH - O senhor faz, aqui, referências à carta 52 de Freud?
JL - Sim. Encontramos também outras passagens nas quais ele quase que toca essa idéia, mas Freud ficou prisioneiro da idéia de que as pulsões eram pura e simplesmente biológicas e endígenas. Eu, não nego absolutamente o biológico e o endígeno, mas acredito que o domínio da Psicanálise não é o endígeno. Existe o endígeno, existe o biológico, absolutamente, mas o próprio da Psicanálise, ou seja, a sexualidade e as fantasias, não são endígenos. Não podemos considerar as fantasias como sendo pura e simplesmente endígenas, ao contrário daquilo que pensou Freud num certo momento e ao contrário do que pensou Melanie Klein ou Susan Isaacs. Meu pensamento não é absolutamente antibiológico. Ele dá seu lugar ao biológico e diz que o domínio da Psicanálise - que é o domínio das pulsões sexuais (que chamo pulsões sexuais de vida e de morte) está "fora do biológico". Esse domínio fundamenta-se no domínio biológico, mas está fora do biológico, ele é relacional. E, nesse relacional, coloco o primeiro acento não no vetor que vai de mim para o outro, mas no vetor que vai "do outro para mim".
Vocês me questionaram a respeito do complexo de édipo. Não acredito que deva ser dito que a teoria da sedução substitui o complexo de édipo. Não se deve dizer: antigamente o complexo nuclear era o complexo de édipo, agora é o complexo de sedução. A sedução não é um complexo, ela é uma situação originária, logo ela é uma situação, eu diria, até mais fundamental que a do édipo. Por que? Porque a relação da criança pequena com um adulto poderia existir mesmo, por exemplo, se não houvesse família. Imaginemos, como na ficção científica, que se façam crianças nos tubos de ensaio. Mesmo assim permaneceria uma relaçao adulto-criança, mesmo se não existisse mais família. Essa relação originária é o fato de que uma criança pequena se encontra confrontada a um mundo adulto já evoluído, cultural e sexual. Para mim, trata-se de uma situação mais fundamental.
Quanto ao complexo de édipo - o grande "complexo" - penso que, nessa medida, é preciso considerá-lo como muito importante, mas, apesar de tudo, como algo contingente e "variável". Penso que é necessário, sob esse ponto de vista, reavaliar um pouco o culturalismo e dizer que as formas do complexo de édipo, ou as formas do complexo de castração, ou outras - tudo que pode ter sido inventado - são muito variáveis e que elas não são estruturas fundamentais do inconsciente vindas do biológico. Aliás, não se saberia como o complexo de édipo viria do interior e do biológico. Freud, num determinado momento, acreditou que ele era herdado mas é muito difícil pensar a filogénese do complexo de édipo. Eu acredito que essas grandes teorias que a Psicanálise descobriu não são, falando propriamente, a metapsicologia. A Psicanálise descobriu no ser humano grandes mitos como esses. Não foi ela que os fabricou, ela os encontrou no ser humano. E esses grandes mitos são uma maneira para o ser humano de procurar fazer face justamente ao enigma da mensagem do outro, uma maneira de pôr em ordem esses enigmas. Dito de outra maneira, situo os grandes complexos do lado do processo secundário da simbolização, do organizador, e não do lado do processo primário e do inconsciente. Para mim o complexo de édipo não é o complexo nuclear do inconsciente, ele é uma maneira de organizar o inconsciente. Eu disse uma vez, por brincadeira, que o homem édipo foi o primeiro assassino por "sentimento de culpa", ou seja, ele não tem uma culpa porque matou, mas ele tinha uma culpa ou uma angústia fundamental e matou para dominar essa angústia. Isso seria um pouco no mesmo sentido de Eichhorn quando ele explicou, certa vez, que os jovens podiam cometer crimes por sentimentos de culpa. Penso que édipo realizou o complexo de édipo, não porque era obrigado a isso pelo inconsciente, mas para "dominar" o inconsciente.
RH - Isso pode ser colocado em relação com o fato de édipo haver encontrado a Esfinge antes de Tebas?
JL - Sim, ele encontrou o enigma da Esfinge e o complexo é uma maneira de responder ao enigma. Talvez a Esfinge fosse a figura do outro, a figura anterior ao incesto e ao crime.
Vocês me perguntam igualmente a respeito do "aprés-coup"*, a Nachtráglichkeit. Minha posição é bastante complexa a respeito do "aprés-coup". Tenho um remorso: é um artigo de quarenta páginas sobre a Nachtráglichkeit que está para ser terminado há 3 ou 4 anos...
Existem duas interpretações do Nachtráglichkeit e procuro encontrar uma terceira.
* Traduzido para o português como "a posteriori". Para uma discussão detalhada dessa tradução ver o "Dicionário Comentado do Alemão de Freud", de Luiz Hanns, Editora Imago, 1996.
É preciso dizer que, para Freud, a Nachtráglichkeit tem, fundamentalmente, um efeito determinista, ou seja, alguma coisa foi depositada em algum momento e ela tem seus resultados "aprés-coup". Isso se daria exatamente da mesma maneira como quando alguém coloca uma bomba com controle remoto num avião e a bomba explode "aprés-coup". Não há mistério: o tempo se desenvolve desde o momento em que se põe a bomba até a explosão.
A flecha do tempo é, então, retilínea.
Pode-se compreender o "aprés-coup" de outra maneira: ao ver uma casa que cai, eu digo, "aprés-coup": "ela estava mal construída". Ou seja, eu volto atrás e, dessa vez, interpreto a flecha do tempo ao contrário. Nas perguntas, vocês dizem que são os franceses que têm esse ponto de vista. Não são somente os franceses.
Vocês têm aí todos os adeptos da hermenáutica psicanalática atualmente dizendo que o sentido do acontecimento não vem da infância, mas que somos "nós" que reprojetamos para três nossa interpretação a respeito.
Pensemos, aqui, nas idéias de Schafer ou de Spence a esse respeito, ou nas idéias de Thomá e Kaechele: todas essas pessoas interpretam a Nachtráglichkeit no sentido de uma hermenêutica, ou seja, pouco importa aquilo que se passou na infância, nós, adultos, reinterpretamos aquilo que aconteceu, nós fazemos uma história do passado como o queremos.
RH - Mas, nesse momento, estaríamos muito próximos de Jung...
JL - Sim, isso mesmo. É a Zur?ckfantasieren (fantasiar retroativamente: do presente em direção ao passado).
Para mim o essencial da hermenêutica diz respeito ao Zur?ckfantasieren, que, acredito, não é mais válida do que a outra direção, ou seja, a do determinismo do passado em direção ao presente. Então, o que fazer?
Na verdade, acredito que existe alguma coisa que está no começo, mas que não está completamente determinada, porque é uma mensagem e, mais especificamente, uma mensagem enigmática. Assim, o que está no início não é uma causa, mas é alguma coisa que é dada como sentido, mas como sentido que é necessário interpretar e traduzir. Eu tomo o exemplo que dê Freud na Traumdeutung (A Interpretação dos Sonhos) sobre a Nachtráglickeit no qual ele conta a seguinte história: um jovem - grande apreciador das mulheres - encontra, certa vez, uma linda mãe que dá o seio ao seu bebê, e esse jovem diz: "que pena que eu não soube isso quando era pequeno", Freud dá esse exemplo para explicar a Nachtráglickeit. Esse exemplo pode ser compreendido no sentido da hermenêutica, ou seja, tudo vem do adulto. Jung vai dizer, ou a hermenêutica vai dizer: a relação da criança com o seio é puramente inocente e é o adulto que projeta para trás seus desejos. Ou então, inversamente, Freud vai dizer: a criança já é sexual e tornou-se sexual no adulto, mas tudo vem da criança. Eu digo simplesmente que Freud, no seu exemplo, esqueceu alguma coisa: a mãe que amamenta. Ele esqueceu-se de que há um outro personagem na cena: é aquela que amamenta e que ela é sexual quando dá o seio à criança.
RH - ... e envia mensagens enigmáticas...
JL - Isso mesmo. Veja então: a Nachtráglickeit não está nem inteiramente na direção passado-presente, nem inteiramente na direção presente-passado, embora aquilo que seja dado já esteja dado, mas dado numa mensagem e não num determinismo biológico puro e simples. Quanto à bomba que explode, para retomar o exemplo do avião, não estamos completamente seguros: a bomba que explode é enigmá-tica!
RH - Nós teremos simplesmente "versães" a respeito de tudo isso...
JL - Sim, temos diferentes traduções, mas, apesar disso, a mensagem está lá de qualquer maneira: não podemos negar que houve, na partida, uma mensagem sexual.
RH - ... que nos faz pensar sem parar...
JL - ... é isso, é ela que nos faz pensar.
Agora falemos a respeito do Congresso da IPA em Barcelona. Eu tenho muitas coisas a dizer a respeito da sexualidade e é típico da instituição internacional que não me tenham pedido um relatório sobre isso. Mas é assim, a instituição é dessa forma: é uma burocracia que decide e isso é típico da burocracia internacional. O que se pode fazer?
Quanto a mim, eu também não esperei André Green para dizer que, na verdade, a Psicanálise fala sempre e tão somente do sexual, e isso porque acredito que mesmo a pulsão de morte é uma pulsão sexual. E eu insisto: a Psicanálise fala tão somente do sexual. O domínio da Psicanálise é o domínio do sexual, não somente o sexual biológico (que existe), mas o sexual fantasmático. Pergunto-me, então, se esse Congresso - tão clássico - conseguirá dizer coisas psicanalíticas, visto que o movimento psicanalítico atual é um movimento de dessexualização. Não estou seguro de que um congresso será suficiente para recolocar a sexualidade na sua devida posição.
Vocês perguntam também a respeito de minha opinião sobre a teoria e a metapsicologia.
Vocês sabem que eu sou completamente a favor da metapsicologia. Eu acredito que a metapsicologia é um pensamento rigoroso e não um pensamento mítico como Freud algumas vezes sugeria. Essa idéia da "bruxa" metapsicológica é um pouco perigosa, porque pode levar a pensar que a metapsicologia é a respeito de fantasias. Para mim, o domínio próprio da metapsicologia e o ponto de partida não é a "clínica", mas é a prática.
Para mim a grande invenção de Freud é a prática e não a clínica. Eu faço uma grande diferença entre as duas. A clínica é a descrição dos mecanismos psíquicos (as neuroses, as psicoses, etc.) e , para mim, a invenção genial de Freud é a prática. Ela é genial, porque está numa espécie de comunicação interna com a situação originária do ser humano. Ele inventou, com a situação analítica, uma situação que se encontra em ressonância com a situação originária do pequeno ser humano. Ele renovou, então, alguma coisa da situação de sedução originária na prática psicanalítica. Para mim, a finalidade da metapsicologia - e isso é o que me levou a ela - é a de dar conta da eficácia extraordinária dessa prática psicanalítica. E por quê? Porque a prática psicanalítica consegue mudar coisas - dificilmente - mas mudar coisas que existem depois dos primeiros anos e vida. E, se podemos mudar, é porque essa situação tocou em alguma coisa que está em relação com a sedção originária.
RH - Ou seja, a prática psicanalítica recoloca a situação originária e cria uma nova oportunidade.
JL - Ela reitera, de uma outra maneira evidentemente, mas ela reitera a relação no que se refere ao enigma.
RH - Sempre me pareceu curioso que Freud empregue a figura da bruxa no momento em que se refere à metapsicologia.
JL - Eu penso que é um pouco uma imagem de Jung. Nos seus discípulos, não em Ferenczi, mas em Lou Andreas Salomão, há expressões como "a bruxa metapsicológica", "a metapsicologia é nossa mitologia". Não concordo absolutamente com isso. Penso que isso vem do fato de que, no pensamento psicanalítico, não se soube distinguir bem dois aspectos: os mitos, efetivamente descobertos pela Psicanálise no ser humano - a respeito dos quais eu falava há pouco, mas que não são a teoria psicanalítica - e, por outro lado, a teoria da relação originária ou seja, essencialmente, a teoria do recalcamento e da constituição do aparelho psíquico. Essa segunda parte é, na minha opinião, uma parte que deve ser rigorosa no sentido de que não é científica como a matemática, mas que pode ser discutida e que podemos procurar modelos cada vez melhor adaptados para essa metapsicologia.
Eu, pessoalmente, procurei trazer um modelo do tipo não diria linguístico no sentido de Lacan, mas um modelo moldado na linguagem e que eu chamo de "modelo tradutivo". O modelo da tradução é, aqui, um modelo mais amplo que o modelo linguístico, na medida em que existem igualmente traduções nas linguagens que não são organizadas, ou seja, pode-se traduzir uma mensagem não-verbal. Repetindo, essa noção é mais ampla que a noção linguística porque existem traduções de mensagens que não se baseiam nessa linguagem : os gestos, a mímica, a música. E, para a criança, há um mundo de linguagem que ela deve traduzir antes de ter acesso à linguagem organizada.
A respeito de Donald Meltzer, devo dizer que não o conheço. De acordo com a pergunta, ele diz "este conflito surge pela admiração do exterior do objeto, etc". Pergunto-me se não ficamos aí, ainda, numa concepção que eu chamaria de ptolomaica, ainda não copernicana.
Existe uma noção na qual estou trabalhando neste momento: é a noção de sublimação. A noção de sublimação, assim como está, constitui-se num impasse para a Psicanálise.
RH - O senhor escreveu um livro sobre a sublimação...
JL - Fiz um livro que mostra que a sublimação é um impasse, mas agora procuro ir além do impasse e penso: por que a sublimação seria um impasse? É porque, uma vez mais, ela procura explicar tudo a partir de pulsões internas. E É preciso tentar pensar a sublimação igualmente a partir do outro, ou seja, da estimulação do outro.
RH - ...dentro da teoria da sedução generalizada ?
JL - Sim, é isso mesmo. Penso, aqui, numa noção como a de "inspiração", que foi uma noção dos románticos alemães, embora eles não a tenham elaborado. Acho muito interessante colocar em foco a noção de inspiração, porque nela, uma vez mais, o que está em jogo é o vetor que "vem do outro" e não o vetor que "vem de mim". "Eu sublimo", mas eu "sou inspirado", ou seja, o vetor da inspiração vem do outro. Evidentemente é necessário desembaraçar essa noção de todo aspecto mítico; não se trata de fazer misticismo, mas é preciso voltar à idéia de que o próprio da criatividade é estar aberto à mensagem do outro e não somente refabricar as coisas a partir das suas pulsões puramente internas.
RH - Teria alguma coisa com a idéa de "musa"?
JL - Sim, algo assim, mas, evidentemente, sem misticismo. Se bem que um pouco de misticismo não é assim tão mau... Só um pequenino grão...
Eu vejo os artistas, por exemplo, alguém como Giacometti: para mim ele é o exemplo próprio de alguma coisa que ultrapassa a idéia de sublimação. Ele busca alguma coisa, mas é alguma coisa que, na sua partida, é uma estimulação que lhe veio do outro.
RH - Então teremos o prazer de poder lê-lo a esse respeito.
JL - Em 1987 irei a Montevideo e seguramente a Buenos Aires, mas não acredito que possa, então, ir a Porto Alegre. Talvez em 1998. É preciso que eu veja isso. Mas não é impossível.
RH - Seria uma grande honra poder recebê-lo em Porto Alegre em 1998. Estudamos seu pensamento e procuramos compreendê-lo, mas gostar?amos de poder igualmente contar com a sua presença, visto que o senhor é uma fonte de inspiração para todos nós.
JL - Ir a Porto Alegre trar-me-á um grande prazer.
RH - Muito obrigado. Eu gostaria de, mais uma vez, lhe agradecer, em nome da nossa Revista de Psicanálise e da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.
JL - Muito bem. Agora vamos conhecer a tina da bruxa. (Risos).
Transcrição e tradução de Maria Carolina dos Santos Rocha
Revisão técnica de Raul Hartke
Revista de Psicanálise - SPPA
O Dr. Jean Laplanche é analista titular, ex-presidente da Association Psychanalytique de France e professor honorário de Psicanálise na Sorbonne - Universidade de Paris VII.
É o diretor científico e responsável pela terminologia da tradução francesa das Obras Completas de Freud e autor - juntamente com Pontalis - do internacionalmente reconhecido "VOCABULÁRIO DA PSICANÁLISE". Seu profundo conhecimento e capacidade de rigorosa reflexão crítica sobre o pensamento freudiano podem ser constatados nos cursos que ministrava na Universidade, transcritos na coleção "PROBLEMÁTICAS". Além disso, a originalidade e criatividade do seu pensamento evidenciam-se em sua "Teoria da sedução generalizada".
As seguintes obras suas estão traduzidas para o português:
1. Halderlin e a Questão do Pai (1961), Jorge Zahar Editor.
2. Vocabulário da Psicanálise (em colaboração com J.B.Pontalis) (1967). Editora Martins Fontes.
3. Fantasia Originária, Fantasias das Origens e Origens da Fantasia. (em colaboração com J.B. Pontalis) (1967), Jorge Zahar Editor.
4. Problemáticas I (1980): A angústia, II (1980): Castração/Simbolizações, III (1980): A sublimação, IV (1981): O inconsciente e o Id, V, (1987): A tina, Editora Martins Fontes.
5. Vida e Morte em Psicanálise (1985), Editora Artes Médicas.
6. Novos Fundamentos para a Psicanálise (1987), Editora Martins Fontes.
7. Traduzir Freud (em colaboração com Cotet e Bourguignon) (1989), Editora Martins Fontes.
8. Teoria da Sedução Generalizada (1988), Editora Artes Médicas.
De formao inicialmente filosófica, o Professor Laplanche analisou-se com Lacan e posteriormente cursou Medicina.
Além de eminente psicanalista, Jean Louis Laplanche é um conceituado produtor de vinho, proprietário de um renomeado "domaine" na regi?o da Borgonha. Seu vinho, o "Cháteau de Pommard", está incluído entre os grandes tintos da França.
O Dr. Laplanche teve a gentileza e disponibilidade para conceder esta entrevista ao Dr. Raul Hartke, representando, então, a Revista, no seu belíssimo Cháteau, em Pommard, próximo à cidade de Beaune, justamente num momento importante da vinificação.
A psicóloga Leonor Guiromand auxiliou na tradução durante a entrevista.
Previamente ao encontro, a Revista lhe enviou as seguintes questões, sublinhando que ele poderia responder quais e na ordem que desejasse, ficando, também, totalmente aberta a possibilidade de outros tópicos serem levantados e desenvolvidos no transcorrer da entrevista:
1 - Conhecemos e estudamos o Prof. Laplanche, tradutor fundamental de Freud, incluindo uma obra especificamente sobre esse tema. Conhecemos também o Prof. Laplanche, exegeta de Freud, tanto, por exemplo, no "Vocabulário da Psicanálise" como na série "Problemáticas", na qual, como o próprio Professor gosta de destacar, o criador da Psicanálise é "posto a trabalhar". Conhecemos e estudamos, finalmente, o Prof. Laplanche como autor psicanalítico, com sua teoria da sedução generalizada que proporia, inclusive, novos fundamentos para a Psicanálise. Levando em conta todo esse seu cabedal de pesquisa, estudo, reflexão e criação, nós o consideramos uma das pessoas mais indicadas para perguntar sobre o que o Sr. considera como sendo os principais desafios quanto à teoria e quanto à prática psicanalíticas nesta virada do século?
2 - Ainda dentro do espírito da pergunta anterior, ocorreu-nos que, no próximo ano-1997- estaremos comemorando o centenário do desaparecimento (manifesto) da "neurôtica" (a teoria da sedução) e do aparecimento do complexo de édipo, transição essa muito bem dissecada pelo Sr. Como o Sr. considera que está a situação do complexo de édipo, cem anos depois? Levando em conta sua teoria da situação e da sedução originárias, esse complexo ainda continuaria sendo "o complexo nuclear das neuroses" O "édipo" que circula atualmente nos textos psicanalíticos é ainda o mesmo de cem anos atrás? A situação edípica precoce descrita por Melanie Klein constituiria apenas um importante acréscimo à teoria do édipo freudiano ou envolveria, como pensa, por exemplo, Willy Baranger, uma mudança de um aspecto central de toda a teoria do criador da Psicanálise, por confundir, por exemplo, aquilo que é uma prioridade cronológica com uma preeminância na determinação, uma prioridade lógica, pois, segundo esse autor, na ordem lógica, a situação triangular antecede à situação dual.
3 - Numa revisão de 1993 sobre a psicossexualidade e a diferença entre os sexos, no livro "The Gender Conundrum" (Editora Routledge, London & New York), Dana Breen diz, a certa altura, que a nosso de Nachtrachlichkeit, envolvendo uma reestruturação psíquica retrospectiva, a partir do complexo de édipo e da castração, marca uma diferença essencial na concepção geral da Psicanálise entre grande parte dos psicanalistas franceses em relação aos anglo-saxões, esses últimos ligados a uma concepção progressiva linear do desenvolvimento psíquico. Já que o Sr., junto com Pontalis, é um dos responsáveis pela divulgação desse importante conceito resgatado por Lacan da obra de Freud, gostaríamos de saber qual seu ponto de vista sobre essa afirmação. Essas possíveis diferenças conceituais, caso fossem tão fundamentais (a ponto de originar concepções distintas da Psicanálise como um todo), teriam repercussões decisivas na prática clínica? Estaríamos diante de diferentes "modelos" de um mesmo paradigma ou de distintos paradigmas, se é que esse conceito de Khun é aplicável à Psicanálise?
4 - O tema oficial do próximo congresso da IPA, em Barcelona, será a sexualidade e consideramos que o Sr. tem coisas muito importantes para dizer a respeito dessa questão. Recentemente, num artigo publicado no IJPA, intitulado "Has sexuality anything to do with psychoanalysis?" (1995), Dr. André Green disse que a sexualidade, considerada por Freud como central no desenvolvimento psíquico, na teoria psicanalítica e no trabalho clínico, tem sido negligenciada pela Psicanálise atual e que, inclusive, o conceito atual de sexualidade não é o mesmo de Freud. Qual o seu ponto de vista a esse respeito?
5 - O Sr. considera possível uma "teoria clínica" psicanalítica que dispense a "bruxa" metapsicologia?
6 - No livro "Novos Fundamentos para a Psicanálise", o Sr. diz que "a situação analítica instaura uma relação originária com o enigma e com o seu portador" e que, nesse contexto, o essencial é a recusa do analista "do saber" e "de saber", sendo esse o motor que propulsiona o tratamento, pois "é a corrida atrás do saber que sujeita e propulsiona o analisando assim como propulsionou a criança".
Donald Meltzer dê uma importância central, no desenvolvimento humano, ao que ele denomina de "conflito estático", envolvendo a admiração pelo exterior do objeto, diretamente acessível aos sentidos, versus seu interior enigmático, que só pode ser apreendido mediante a imaginação. Esse conflito mobiliza tanto o desejo de conhecer, preservando a liberdade do objeto, como o desejo de possuí-lo ou de violá-lo.
O Sr. veria alguma relação ou alguma possibilidade de articulação de suas idéias acima referidas com o "conflito estático" de Meltzer?
No início da entrevista, realizada no dia 4 de outubro de 1996, o Dr. Laplanche disse que é, ao mesmo tempo, vinicultor e psicanalista e que, no momento, se encontrava em plena atividade de fabricação de seu vinho.
RH - Gostaríamos de lhe agradecer imensamente por nos haver recebido e dedicado um espaço de seu tempo num momento tão importante de suas atividades como vinicultor.
JL - Com efeito, este é um momento de muito trabalho e, sobretudo, porque aqui sou eu mesmo quem faz tudo.
RH - Nós já ouvimos falar muito do seu vinho, o Cháteau de Pommard.
JL - Após a entrevista vocês irão ver um pouco de tudo isso comigo.
RH - É um prazer poder estar aqui e fazer esta entrevista porque o Sr., utilizando uma expressão sua, é um objeto-fonte para nossa atividade diária como psicanalistas e para nossas reflexões teóricas.
No caminho, vindo em direção à sua propriedade, eu pensava numa temática que o senhor aborda muito seguidamente - a questão da teoria da sedução - e dei-me conta de que estamos atravessando um aniversário do período mesmo dessa mudança, pois, no dia 21 de setembro, Freud enviou a carta a Fliess dizendo que havia abandonado sua "Neurotica" e, no dia 15 de outubro, como, aliás, o senhor sublinha, escreveu-lhe a respeito da descoberta do complexo de édipo. Estamos, então, aqui com o Sr., exatamente nos dias correspondentes a essa profunda e decisiva virada no pensamento freudiano.
JL - (Risos) É muito divertido porque, com efeito, estamos na época do equinócio de outono e eu nasci no solstício de verão. Sendo assim, nasci nove meses após o abandono da teoria da sedução, ou seja, fui concebido - isto é obviamente, uma fantasia* - no momento do abandono da teoria da sedução. Nasci no dia 21 de junho, portanto, nove meses após. (Risos).
RH - Uma outra coisa que me pareceu curiosa e interessante é que alguém como o senhor, conhecedor profundo da "bruxa metapsicologia"**, trabalhe igualmente a terra. Lembro-me da passagem do Fausto de Goethe, quando Mefisto sugere a Fausto cultivar a terra ou então procurar a bruxa. E, neste momento, estamos junto a alguém, o Sr., que conseguiu conciliar a "bruxa" e o trabalho da terra. (Risos).
JL - (Risos) Mas o senhor verá daqui há pouco que minhas tinas, onde faço o vinho, são, de certa forma, como o caldeirão da bruxa. (Risos).
RH - Eu gostaria, agora, de ouvi-lo sobre algumas das perguntas que lhe enviamos a titulo de sugestão para um início de diálogo.
* Laplanche emprega aqui a palavra francesa "fantasme". Ver o comentário sobre a tradução desse termo do alemão para o francês no verbete "fantasia", do Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, Editora Martins Fontes, 2a edição, 1991. (N. do R.).
** Alusão a "Fausto" de Goethe na cena intitulada "Na cozinha da Bruxa". A partir dela Freud estabelece uma analogia entre a metapsicologia e a bruxa. Fausto, já com setenta anos, gostaria de remoçar. Mefisto propõe-lhe, inicialmente, levar uma vida simples de agricultor no campo, mas Fausto rejeita essa proposição. Mefisto responde-lhe: "Pois venha então a bruxa, amigo". A bruxa prepara-lhe uma poção mágica, Fausto a ingere e, dessa forma, recupera sua juventude. (N. do R.).
JL - Sim. Eu examinei o primeiro ponto das questões que me foram enviadas, a respeito do desafio para a virada do século. Para mim, existem dois desafios, o prático e o teórico e os dois estão ligados. Entendo o desafio prático da seguinte maneira: a Psicanálise está a perigo de tornar-se uma profissão de saúde. Isso significa estar subordinada ao poder institucional, tanto ao poder institucional das organizações de saúde quanto ao poder institucional das associações psicanalíticas. Acredito que o perigo está também no risco de que as associações de Psicanálise se tornem uma transmissão das demandas sociais de saúde. Isso se observa tanto em relação à prática quanto á formação. Vê-se, cada vez mais aqui na Europa, mas também em outros países, que a prática está subordinada à obrigação de resultados sintomáticos de saúde. O pagamento das curas torna-se cada vez mais um pagamento em função da intervenção de um juiz, poder-se-ia dizer, que julga se o resultado é ou não é bom. Isso significa dizer que a relação psicanalítica não é mais entre dois, existindo um terceiro que intervém, porque paga, porque pede certificados, etc. E afinal, é preciso que se diga - e eu direi as coisas francamente - para resultados socialmente reconhecidos há técnicas mais eficazes que a Psicanálise. A Psicanálise não pode combater baseada no plano do resultado social e da adaptação, mesmo porque, naquilo que diz respeito à adaptação - repito - há muitas técnicas mais eficazes do que a Psicanálise.
Outro perigo, ainda sob o ponto de vista da prática, é que, em função dessa demanda social, a formação enquanto tal se torne uma formação que deve ser aceita e reconhecida pelas instituições. Mesmo a Psicanálise pessoal, que é o fundamento da formação analítica, tende a tornar-se cada vez mais alguma coisa de institucional: é o que se chama de análise didática (training analysis) e eu tenho-me batido, há dezenas de anos, contra a própria idéia de "training analysis". Nós somos, acredito, a única Sociedade que suprimiu completamente a idéia de "training analysis", ou seja, uma análise empreendida e aceita pela instituição. Na medida em que a sociedade psicanalítica deve aceitá-la, ela deverá, também, mais cedo ou mais tarde, prestar contas à instituição estatal. Na nossa Associação, que se opõe completamente às regras da IPA - embora estejamos na IPA - tomamos, então, uma posição radical em relação a esse ponto de vista, ou seja, suprimimos completamente a Psicanálise didática. Para nós a Psicanálise, seja ela de formação ou de cura, é uma coisa puramente pessoal, que deve ser empreendida de maneira absolutamente pessoal, sem a intervenção da instituição em nenhuma instância.
Acredito que, atualmente, fora dessa questão um pouco técnica, o grande perigo para a Psicanálise é aquele de ser confundida com uma técnica psicoterapêutica. Na minha opinião é o primeiro desafio que traz o risco de suprimir a Psicanálise, mesmo que o nome subsista. O nome provavelmente subsistirá, mas a coisa não, ou seja, os verdadeiros psicanalistas serão forçados a encontrar um outro nome. Na Europa vemos muito disso, mas acredito que, sob outras formas, também na América do Sul e, sob outras formas ainda, nos Estados Unidos. Na Europa, a institucionalização caminha muito rapidamente: vê-se isso na Alemanha, na Holanda, etc. A França é um dos raros países onde a Psicanálise permanece uma profissão que não é verdadeiramente uma profissão, uma profissão não reconhecida enquanto tal. Isso é tudo para rapidamente dizer qual é o desafio prático o qual, acredito, é o maior desafio e que não sei como vamos ultrapassar.
Agora, naquilo que diz respeito à teoria e é metapsicologia eu, diria que, efetivamente, o desafio é de extrair todas as conseqüências da experiência freudiana e, a partir daí, renovar a teoria. É o que procurei fazer com a teoria da sedução.
RH - Colocar Freud a trabalhar, como o senhor tanto gosta de dizer...
JL - Sim, eu acredito que é, inicialmente, fazer trabalhar Freud, mas há um momento em que já se fez com que Freud trabalhasse bastante e, então, é preciso trocar as coisas, não é assim? Acredito que uma noção como a de "mensagem" substitui a noção de "representação", que a noção de "outro" tomou o lugar da de "objeto" e que o primado do outro, na constituição do sujeito sexual, é algo que faz uma revolução no pensamento de Freud.
RH - Seria possível falar um pouco mais a respeito dessa substituição da noção de "representação"?
JL - A noção de representação permanece uma noção subjetiva ligada à idéia do primado do sujeito, ou seja, em última instância, uma noção solipsista : não saímos da pessoa que "se" representa alguma coisa. Freud nào saiu dessa noção de representação.
Acredito que a perspectiva muda completamente, a partir do momento em que pensamos que aquilo que acontece ao sujeito não são somente percepções e representações, mas "mensagens" significativas vindas do outro.
RH - Isso estaria incluído na sua teoria da sedução generalizada?
* No original: "des traces".
JL - Sim. Se quiser, podemos também tomar o exemplo da diferença entre "traço"* e "mensagem". Robinson (Cruso?), na sua ilha, vê passos na areia: são traços, são representações. Podem ser tanto traços de um homem como de um animal ou mesmo traços de um meteorito: são representações. Nós ficamos, então, numa situação que eu chamo de ptolomaica, ou seja, na qual Robinson se considera como o centro do mundo: ele deve interpretar os signos. Mas, ao contrário disso, se ele vê que as impressões* de passos estão organizadas para indicar uma direção, nesse momento, não se trata mais de traços mas, sim, de mensagens. E aquilo que a criança e o ser humano devem interpretar não é um mundo abstrato de percepções e de representações, é um mundo de mensagens, onde já há sentido que é enviado pelo outro. É o que chamo de "reversão copernicana da perspectiva"**, ou seja, do mesmo modo que Copérnico compreendeu que a terra rodava ao redor do sol e não o sol ao redor da terra, o ser humano deve compreender que ele se move ao redor do outro e não que o outro é, pura e simplesmente, sua percepção.
Gostaria de falar de Melanie Klein, porque, num certo momento, vocês se referem a ela. Ela também, como Freud, fica num mundo subjetivo, ou seja, quando fala do objeto, esse objeto é um objeto "para" a criança: ele é bom ou ele é mau, porque a criança projeta sobre ele suas pulsões boas ou más, mas não há a idéia de que entre a criança e o adulto não existe objeto, mas, sim, mensagens. Os objetos são enviados para dizer alguma coisa, os objetos já estão cheios de significação, são os significantes ou as mensagens. Em Freud, tanto quanto em Melanie Klein os objetos estão sempre colocados em rela??o com a "minha percepção" do objeto. Em outros termos, o próprio Freud ficou na antiga tradição européia da filosofia que também é a do sujeito, na centralização no sujeito, filosofia de Descartes, de Kant e de tantos outros. Mesmo para os fenomenólogos, é sempre o mundo que é "minha representação". Ora, eu digo, o mundo não é somente minha representção - e eu não nego que existam representações - mas o mundo é habitado por mensagens que comportam sentido antes que eu tenha necessidade de dar-lhes sentido.
RH - ...E que vão provocar, em mim, a necessidade de um trabalho de tradução...
* No original: "les empreintes".
** O último livro publicado pelo Dr. Laplanche, ainda não traduzido para o português, intitula-se "La révolution copernicienne inachevíe" (Editora Aubier, 1992).
JL - Certamente e isto é a parte da tradução na teoria da sedução. Ou seja, a teoria da sedução comporta também um aspecto que é uma tentativa de dar conta do recalcamento, uma tentativa de compreender o recalcamento como resultante de um trabalho justamente de tradução das mensagens do outro e de uma tradução que é imperfeita, que deixa restos não traduzidos.
RH - O senhor faz, aqui, referências à carta 52 de Freud?
JL - Sim. Encontramos também outras passagens nas quais ele quase que toca essa idéia, mas Freud ficou prisioneiro da idéia de que as pulsões eram pura e simplesmente biológicas e endígenas. Eu, não nego absolutamente o biológico e o endígeno, mas acredito que o domínio da Psicanálise não é o endígeno. Existe o endígeno, existe o biológico, absolutamente, mas o próprio da Psicanálise, ou seja, a sexualidade e as fantasias, não são endígenos. Não podemos considerar as fantasias como sendo pura e simplesmente endígenas, ao contrário daquilo que pensou Freud num certo momento e ao contrário do que pensou Melanie Klein ou Susan Isaacs. Meu pensamento não é absolutamente antibiológico. Ele dá seu lugar ao biológico e diz que o domínio da Psicanálise - que é o domínio das pulsões sexuais (que chamo pulsões sexuais de vida e de morte) está "fora do biológico". Esse domínio fundamenta-se no domínio biológico, mas está fora do biológico, ele é relacional. E, nesse relacional, coloco o primeiro acento não no vetor que vai de mim para o outro, mas no vetor que vai "do outro para mim".
Vocês me questionaram a respeito do complexo de édipo. Não acredito que deva ser dito que a teoria da sedução substitui o complexo de édipo. Não se deve dizer: antigamente o complexo nuclear era o complexo de édipo, agora é o complexo de sedução. A sedução não é um complexo, ela é uma situação originária, logo ela é uma situação, eu diria, até mais fundamental que a do édipo. Por que? Porque a relação da criança pequena com um adulto poderia existir mesmo, por exemplo, se não houvesse família. Imaginemos, como na ficção científica, que se façam crianças nos tubos de ensaio. Mesmo assim permaneceria uma relaçao adulto-criança, mesmo se não existisse mais família. Essa relação originária é o fato de que uma criança pequena se encontra confrontada a um mundo adulto já evoluído, cultural e sexual. Para mim, trata-se de uma situação mais fundamental.
Quanto ao complexo de édipo - o grande "complexo" - penso que, nessa medida, é preciso considerá-lo como muito importante, mas, apesar de tudo, como algo contingente e "variável". Penso que é necessário, sob esse ponto de vista, reavaliar um pouco o culturalismo e dizer que as formas do complexo de édipo, ou as formas do complexo de castração, ou outras - tudo que pode ter sido inventado - são muito variáveis e que elas não são estruturas fundamentais do inconsciente vindas do biológico. Aliás, não se saberia como o complexo de édipo viria do interior e do biológico. Freud, num determinado momento, acreditou que ele era herdado mas é muito difícil pensar a filogénese do complexo de édipo. Eu acredito que essas grandes teorias que a Psicanálise descobriu não são, falando propriamente, a metapsicologia. A Psicanálise descobriu no ser humano grandes mitos como esses. Não foi ela que os fabricou, ela os encontrou no ser humano. E esses grandes mitos são uma maneira para o ser humano de procurar fazer face justamente ao enigma da mensagem do outro, uma maneira de pôr em ordem esses enigmas. Dito de outra maneira, situo os grandes complexos do lado do processo secundário da simbolização, do organizador, e não do lado do processo primário e do inconsciente. Para mim o complexo de édipo não é o complexo nuclear do inconsciente, ele é uma maneira de organizar o inconsciente. Eu disse uma vez, por brincadeira, que o homem édipo foi o primeiro assassino por "sentimento de culpa", ou seja, ele não tem uma culpa porque matou, mas ele tinha uma culpa ou uma angústia fundamental e matou para dominar essa angústia. Isso seria um pouco no mesmo sentido de Eichhorn quando ele explicou, certa vez, que os jovens podiam cometer crimes por sentimentos de culpa. Penso que édipo realizou o complexo de édipo, não porque era obrigado a isso pelo inconsciente, mas para "dominar" o inconsciente.
RH - Isso pode ser colocado em relação com o fato de édipo haver encontrado a Esfinge antes de Tebas?
JL - Sim, ele encontrou o enigma da Esfinge e o complexo é uma maneira de responder ao enigma. Talvez a Esfinge fosse a figura do outro, a figura anterior ao incesto e ao crime.
Vocês me perguntam igualmente a respeito do "aprés-coup"*, a Nachtráglichkeit. Minha posição é bastante complexa a respeito do "aprés-coup". Tenho um remorso: é um artigo de quarenta páginas sobre a Nachtráglichkeit que está para ser terminado há 3 ou 4 anos...
Existem duas interpretações do Nachtráglichkeit e procuro encontrar uma terceira.
* Traduzido para o português como "a posteriori". Para uma discussão detalhada dessa tradução ver o "Dicionário Comentado do Alemão de Freud", de Luiz Hanns, Editora Imago, 1996.
É preciso dizer que, para Freud, a Nachtráglichkeit tem, fundamentalmente, um efeito determinista, ou seja, alguma coisa foi depositada em algum momento e ela tem seus resultados "aprés-coup". Isso se daria exatamente da mesma maneira como quando alguém coloca uma bomba com controle remoto num avião e a bomba explode "aprés-coup". Não há mistério: o tempo se desenvolve desde o momento em que se põe a bomba até a explosão.
A flecha do tempo é, então, retilínea.
Pode-se compreender o "aprés-coup" de outra maneira: ao ver uma casa que cai, eu digo, "aprés-coup": "ela estava mal construída". Ou seja, eu volto atrás e, dessa vez, interpreto a flecha do tempo ao contrário. Nas perguntas, vocês dizem que são os franceses que têm esse ponto de vista. Não são somente os franceses.
Vocês têm aí todos os adeptos da hermenáutica psicanalática atualmente dizendo que o sentido do acontecimento não vem da infância, mas que somos "nós" que reprojetamos para três nossa interpretação a respeito.
Pensemos, aqui, nas idéias de Schafer ou de Spence a esse respeito, ou nas idéias de Thomá e Kaechele: todas essas pessoas interpretam a Nachtráglichkeit no sentido de uma hermenêutica, ou seja, pouco importa aquilo que se passou na infância, nós, adultos, reinterpretamos aquilo que aconteceu, nós fazemos uma história do passado como o queremos.
RH - Mas, nesse momento, estaríamos muito próximos de Jung...
JL - Sim, isso mesmo. É a Zur?ckfantasieren (fantasiar retroativamente: do presente em direção ao passado).
Para mim o essencial da hermenêutica diz respeito ao Zur?ckfantasieren, que, acredito, não é mais válida do que a outra direção, ou seja, a do determinismo do passado em direção ao presente. Então, o que fazer?
Na verdade, acredito que existe alguma coisa que está no começo, mas que não está completamente determinada, porque é uma mensagem e, mais especificamente, uma mensagem enigmática. Assim, o que está no início não é uma causa, mas é alguma coisa que é dada como sentido, mas como sentido que é necessário interpretar e traduzir. Eu tomo o exemplo que dê Freud na Traumdeutung (A Interpretação dos Sonhos) sobre a Nachtráglickeit no qual ele conta a seguinte história: um jovem - grande apreciador das mulheres - encontra, certa vez, uma linda mãe que dá o seio ao seu bebê, e esse jovem diz: "que pena que eu não soube isso quando era pequeno", Freud dá esse exemplo para explicar a Nachtráglickeit. Esse exemplo pode ser compreendido no sentido da hermenêutica, ou seja, tudo vem do adulto. Jung vai dizer, ou a hermenêutica vai dizer: a relação da criança com o seio é puramente inocente e é o adulto que projeta para trás seus desejos. Ou então, inversamente, Freud vai dizer: a criança já é sexual e tornou-se sexual no adulto, mas tudo vem da criança. Eu digo simplesmente que Freud, no seu exemplo, esqueceu alguma coisa: a mãe que amamenta. Ele esqueceu-se de que há um outro personagem na cena: é aquela que amamenta e que ela é sexual quando dá o seio à criança.
RH - ... e envia mensagens enigmáticas...
JL - Isso mesmo. Veja então: a Nachtráglickeit não está nem inteiramente na direção passado-presente, nem inteiramente na direção presente-passado, embora aquilo que seja dado já esteja dado, mas dado numa mensagem e não num determinismo biológico puro e simples. Quanto à bomba que explode, para retomar o exemplo do avião, não estamos completamente seguros: a bomba que explode é enigmá-tica!
RH - Nós teremos simplesmente "versães" a respeito de tudo isso...
JL - Sim, temos diferentes traduções, mas, apesar disso, a mensagem está lá de qualquer maneira: não podemos negar que houve, na partida, uma mensagem sexual.
RH - ... que nos faz pensar sem parar...
JL - ... é isso, é ela que nos faz pensar.
Agora falemos a respeito do Congresso da IPA em Barcelona. Eu tenho muitas coisas a dizer a respeito da sexualidade e é típico da instituição internacional que não me tenham pedido um relatório sobre isso. Mas é assim, a instituição é dessa forma: é uma burocracia que decide e isso é típico da burocracia internacional. O que se pode fazer?
Quanto a mim, eu também não esperei André Green para dizer que, na verdade, a Psicanálise fala sempre e tão somente do sexual, e isso porque acredito que mesmo a pulsão de morte é uma pulsão sexual. E eu insisto: a Psicanálise fala tão somente do sexual. O domínio da Psicanálise é o domínio do sexual, não somente o sexual biológico (que existe), mas o sexual fantasmático. Pergunto-me, então, se esse Congresso - tão clássico - conseguirá dizer coisas psicanalíticas, visto que o movimento psicanalítico atual é um movimento de dessexualização. Não estou seguro de que um congresso será suficiente para recolocar a sexualidade na sua devida posição.
Vocês perguntam também a respeito de minha opinião sobre a teoria e a metapsicologia.
Vocês sabem que eu sou completamente a favor da metapsicologia. Eu acredito que a metapsicologia é um pensamento rigoroso e não um pensamento mítico como Freud algumas vezes sugeria. Essa idéia da "bruxa" metapsicológica é um pouco perigosa, porque pode levar a pensar que a metapsicologia é a respeito de fantasias. Para mim, o domínio próprio da metapsicologia e o ponto de partida não é a "clínica", mas é a prática.
Para mim a grande invenção de Freud é a prática e não a clínica. Eu faço uma grande diferença entre as duas. A clínica é a descrição dos mecanismos psíquicos (as neuroses, as psicoses, etc.) e , para mim, a invenção genial de Freud é a prática. Ela é genial, porque está numa espécie de comunicação interna com a situação originária do ser humano. Ele inventou, com a situação analítica, uma situação que se encontra em ressonância com a situação originária do pequeno ser humano. Ele renovou, então, alguma coisa da situação de sedução originária na prática psicanalítica. Para mim, a finalidade da metapsicologia - e isso é o que me levou a ela - é a de dar conta da eficácia extraordinária dessa prática psicanalítica. E por quê? Porque a prática psicanalítica consegue mudar coisas - dificilmente - mas mudar coisas que existem depois dos primeiros anos e vida. E, se podemos mudar, é porque essa situação tocou em alguma coisa que está em relação com a sedção originária.
RH - Ou seja, a prática psicanalítica recoloca a situação originária e cria uma nova oportunidade.
JL - Ela reitera, de uma outra maneira evidentemente, mas ela reitera a relação no que se refere ao enigma.
RH - Sempre me pareceu curioso que Freud empregue a figura da bruxa no momento em que se refere à metapsicologia.
JL - Eu penso que é um pouco uma imagem de Jung. Nos seus discípulos, não em Ferenczi, mas em Lou Andreas Salomão, há expressões como "a bruxa metapsicológica", "a metapsicologia é nossa mitologia". Não concordo absolutamente com isso. Penso que isso vem do fato de que, no pensamento psicanalítico, não se soube distinguir bem dois aspectos: os mitos, efetivamente descobertos pela Psicanálise no ser humano - a respeito dos quais eu falava há pouco, mas que não são a teoria psicanalítica - e, por outro lado, a teoria da relação originária ou seja, essencialmente, a teoria do recalcamento e da constituição do aparelho psíquico. Essa segunda parte é, na minha opinião, uma parte que deve ser rigorosa no sentido de que não é científica como a matemática, mas que pode ser discutida e que podemos procurar modelos cada vez melhor adaptados para essa metapsicologia.
Eu, pessoalmente, procurei trazer um modelo do tipo não diria linguístico no sentido de Lacan, mas um modelo moldado na linguagem e que eu chamo de "modelo tradutivo". O modelo da tradução é, aqui, um modelo mais amplo que o modelo linguístico, na medida em que existem igualmente traduções nas linguagens que não são organizadas, ou seja, pode-se traduzir uma mensagem não-verbal. Repetindo, essa noção é mais ampla que a noção linguística porque existem traduções de mensagens que não se baseiam nessa linguagem : os gestos, a mímica, a música. E, para a criança, há um mundo de linguagem que ela deve traduzir antes de ter acesso à linguagem organizada.
A respeito de Donald Meltzer, devo dizer que não o conheço. De acordo com a pergunta, ele diz "este conflito surge pela admiração do exterior do objeto, etc". Pergunto-me se não ficamos aí, ainda, numa concepção que eu chamaria de ptolomaica, ainda não copernicana.
Existe uma noção na qual estou trabalhando neste momento: é a noção de sublimação. A noção de sublimação, assim como está, constitui-se num impasse para a Psicanálise.
RH - O senhor escreveu um livro sobre a sublimação...
JL - Fiz um livro que mostra que a sublimação é um impasse, mas agora procuro ir além do impasse e penso: por que a sublimação seria um impasse? É porque, uma vez mais, ela procura explicar tudo a partir de pulsões internas. E É preciso tentar pensar a sublimação igualmente a partir do outro, ou seja, da estimulação do outro.
RH - ...dentro da teoria da sedução generalizada ?
JL - Sim, é isso mesmo. Penso, aqui, numa noção como a de "inspiração", que foi uma noção dos románticos alemães, embora eles não a tenham elaborado. Acho muito interessante colocar em foco a noção de inspiração, porque nela, uma vez mais, o que está em jogo é o vetor que "vem do outro" e não o vetor que "vem de mim". "Eu sublimo", mas eu "sou inspirado", ou seja, o vetor da inspiração vem do outro. Evidentemente é necessário desembaraçar essa noção de todo aspecto mítico; não se trata de fazer misticismo, mas é preciso voltar à idéia de que o próprio da criatividade é estar aberto à mensagem do outro e não somente refabricar as coisas a partir das suas pulsões puramente internas.
RH - Teria alguma coisa com a idéa de "musa"?
JL - Sim, algo assim, mas, evidentemente, sem misticismo. Se bem que um pouco de misticismo não é assim tão mau... Só um pequenino grão...
Eu vejo os artistas, por exemplo, alguém como Giacometti: para mim ele é o exemplo próprio de alguma coisa que ultrapassa a idéia de sublimação. Ele busca alguma coisa, mas é alguma coisa que, na sua partida, é uma estimulação que lhe veio do outro.
RH - Então teremos o prazer de poder lê-lo a esse respeito.
JL - Em 1987 irei a Montevideo e seguramente a Buenos Aires, mas não acredito que possa, então, ir a Porto Alegre. Talvez em 1998. É preciso que eu veja isso. Mas não é impossível.
RH - Seria uma grande honra poder recebê-lo em Porto Alegre em 1998. Estudamos seu pensamento e procuramos compreendê-lo, mas gostar?amos de poder igualmente contar com a sua presença, visto que o senhor é uma fonte de inspiração para todos nós.
JL - Ir a Porto Alegre trar-me-á um grande prazer.
RH - Muito obrigado. Eu gostaria de, mais uma vez, lhe agradecer, em nome da nossa Revista de Psicanálise e da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.
JL - Muito bem. Agora vamos conhecer a tina da bruxa. (Risos).
Transcrição e tradução de Maria Carolina dos Santos Rocha
Revisão técnica de Raul Hartke
Revista de Psicanálise - SPPA
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