vendredi 20 février 2009

O Jardineiro Fiel




por: Roberto Gomes - Membro Efetivo da SPPA

Introdução
Fernando Meirelles (Cidade de Deus) e John Le Carré (após Single and Single, sobre a máfia dos vampiros) protagonizam esta novela de mistério na África neocolonial.
O governo do Quênia e o Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra estão envolvidos com a indústria farmacêutica Three Bees (Três Abelhas) na aplicação de testes clínicos de uma nova droga para tuberculose - DyPraxa - na população pobre de Nairóbi. A droga apresenta como um de seus efeitos colaterais a lenta e dolorosa morte por falência múltipla de órgãos. O filme, logo no início, contrasta as diferenças sociais entre quenianos e britânicos.
A ação de The Constant Gardener inicia numa Faculdade de Direito em Londres, onde Tessa (estudante, órfã, 24 anos, filha de uma condessa italiana médica e de um advogado juiz) confronta Justin (44 anos, diplomata, filho de uma tradicional e aristocrática família inglesa de médicos e pesquisadores em botânica).
Ela o questiona sobre o papel do governo inglês na guerra do Iraque. No livro que deu origem ao filme, Tessa questiona-o sobre as funções de um Estado.
Justin se apaixona por ela, eles se casam e vão para o Quênia. A morte de Tessa desencadeia uma investigação vertiginosa sobre as operações da Três Abelhas e sobre funcionários quenianos corruptos, os quais, apesar de conhecerem os riscos letais da droga, não hesitam em forrar seus bolsos com propinas para fazer vistas grossas ao mal que patrocinam.
Mulheres negras com o logo das três abelhas distribuem e propagandeiam as drogas, ao mesmo tempo que exigem assinatura às cegas de termos de consentimento que funcionam como uma verdadeira licença para matar.
A morte misteriosa de uma jovem negra motiva Tessa e o Dr. Arnold Bluhm, médico negro da Bélgica, a investigar a ThreeBees recorrendo a ONGs da Alemanha e da Suécia para obter informações, numa verdadeira rede de amizade.
Justin mantém-se alheio, cego às atividades de Tessa. Prefere as intrigas relacionadas à cúpula das relações diplomáticas entre britânicos e quenianos – a lista da vergonha e da corrupção - e dedica-se ao seu hobby de jardinagem. É obrigado a olhar melhor para a situação quando recebe a ordem de colocar Tessa no seu devido lugar. O idealismo cega a Tessa; o ciúme, a Justin.
Após a morte de Tessa, Justin não dá crédito aos boatos e informações caluniosas sobre ela e o Dr. Bluhm – mas não mais se recusa a olhar para a realidade – e inicia a investigação sobre as atividades da esposa, procurando entender melhor sua motivação, dando-lhe crédito, e descobrindo quem ordenara sua morte, sem importar-se com as conseqüências.
Segundo o próprio Le Carré, a missão dela tornou-se a sua missão, numa ação incorporativa da esposa morta, com quem passa a dialogar e a tecer recordações ao longo de sua nova trajetória. Esse diálogo interior parece ter sido a garantia de sua sobrevivência psíquica.
Vou desenvolver uma linha de raciocínio que busca ancorar-se em dois conceitos da psicologia profunda – designados aqui como fazer vistas grossas e ritos de sacrifício - e argumentar em torno dos fatos da trama, para relacionar esses aspectos psicológicos com suas possíveis influências na política.
Vistas grossas
Podemos pensar que Justin realmente não sabia, era inocente quanto à natureza dos atos e argumentos de Tessa: que o lucro das corporações e do capital ocidental é que arruínam o meio ambiente e colocam em risco vidas de pessoas.
Como alternativa, poderíamos também pensar que Justin sabia e fazia que não sabia. Colaboram para isso o oportunismo e o conluio dos demais personagens (sobre a dura realidade dos fatos, a incomodação de saber, o custo da caça aos bandidos, a dificuldade de resistir às tentações do dinheiro e da fama fácil). Vemos aí a tendência a evadir-se da realidade, a tentativa de fazer vistas grossas a tudo o que havia ocorrido.
Fazer vistas grossas para a realidade é uma maneira que encontramos para nos protegermos dos horrores do cotidiano. Esse pode ser o mecanismo dominante na negação das conseqüências da destruição do meio ambiente, da pobreza e do atraso, do terrorismo, da corrupção, da proliferação de armas nucleares e, no caso em foco, das pesquisas impiedosas e inconseqüentes com seres humanos.
O refúgio da verdade na onipotência – eu tenho a versão verdadeira - torna-se mais evidente em tempos de crise, como guerras, revoluções, grandes instabilidades político-econômicas, e predispõe a aceitar e louvar heróis e gurus, salvadores e místicos ilusionistas. Incluam-se aí a medicina e a opinião médica, que são insidiosa e metodicamente corrompidas pelas gigantes farmacêuticas e suas drogas miraculosas. Ressalte-se, no entanto, que essas condições coexistem ao lado de médicos e empresas farmacêuticas responsáveis; e médicos altamente qualificados que sofrem perseguições por discordarem de seus patrocinadores.
Ritos de Sacrifício
O ponto nodal de convergência do filme são as margens do lago Turkana. O lago é um dos mais ricos sítios de pesquisa das origens da humanidade, atestado pela riqueza das descobertas das expedições arqueológicas da Fundação Leakey.
Ali morre Tessa no início do filme; e ali morre Justin no fim. Solitários e distantes da civilização. Queimando e dissolvendo-se sob o abrasante sol africano. Vítimas imoladas para aplacar a ira dos novos deuses do Olimpo.
Inverte-se o contraste social do início do filme: neste local, a beleza do cenário africano, a cor vívida e pulsante da natureza afro-queniana contrasta com o preto carbonizado e putrefato dos corpos britânicos.
O mais primitivo e o mais desenvolvido tornam a se encontrar, numa luta que parece eterna e interminável. O mais sublime e o mais sórdido e bárbaro continuam sócios, acompanhando o desenvolvimento do homem.
Justin intui sua morte iminente. Despoja-se da arma, descarrega-a e prepara-se para a imolação, para o sacrifício. Ato premeditado que prepara o desfecho final em ação de corpo presente numa igreja de Londres. Novamente o contraste: o santuário primitivo, a natureza, o altar dos primeiros sacrifícios; e o ofício sagrado no interior dos templos, para onde se transportou o altar sacrificial. É onde caem as máscaras, não por acaso, um dos símbolos mais significativos da cultura africana. A imolação de Justin, ou seu sacrifício, contém uma vingança contra os deuses como o herói que não teme desafiar seus poderes.
O altar da natureza como palco de um sacrifício, com todos os seus componentes primitivos atualizados em uma auto-imolação em câmara ardente?
Foi a partir dessas observações que redirecionei meu pensamento para o estudo dos atos e ritos de sacrifício.
O termo sacrifício deriva do latim sacrificium, que tem o sentido de oferenda sagrada. É um ritual no qual uma vítima é sacrificada para criar relações favoráveis entre os homens e os deuses, ou, como nesse caso, entre homens e homens. O desejo de quem sacrifica a vítima é, também, o de incorporar e apropriar-se dos atributos e qualidades desta.
Com a evolução, a vítima humana passa a ser substituída por oferendas de animais e coisas, efetuadas num altar. Posteriormente, trabalhos a serviço de Deus substituem as oferendas nos templos. Servir a Deus torna-se uma forma de sacrifício. O fogo e a fumaça são componentes importantes do ritual.
Assim como o Pentateuco prescreve as condições para a celebração do sacrifício, também o mais antigo poema conhecido, a história de Gilgames (o grande homem que não queria morrer) e Enkidu (eleito para morrer em seu lugar), escrito na Babilônia – atual Iraque - há mais de 35 séculos, alude a um rito sacrificial.
Essas alusões a oferendas, ao fogo ou a fumaça em celebrações (incenso) persistem até hoje em gestos e atos da vida cotidiana como expressão derivada de fantasias sacrificiais. O sincretismo religioso presente em ritos afro-brasileiros ilustram bem muitas dessas situações.
Mas e o oferecer-se espontaneamente como vítima?
O rito de caçar e matar a vítima - caso da Tessa - ou o rito de imolar-se espontaneamente como vítima do sacrifício - caso do Justin - podem ser concebidos e interpretados como uma manobra política e de interesses em sua origem.
Mas também poderíamos ver no sacrifício de Justin oferecendo-se como vítima o desejo de vivificar e aplacar a imagem de Tessa, e assim proteger-se de sua acusação por sua negligência com ela. Ao mesmo tempo, Justin trama a vingança para reparar sua omissão, e, assim, restabelecer relações amigáveis com ela.
Este sacrifício é carregado de sentimentos múltiplos e contraditórios em relação à mulher que foi concomitantemente amada e negligenciada, protegida e vítima de seu ressentimento. Pressionado pela culpa, Justin desloca sua força destrutiva reprimida – era um tímido introvertido – na direção de uma denúncia pública contra os detratores de Tessa..
Talvez possamos pensar que seu sacrifício contenha também, num segundo aspecto, a fantasia ou desejo de que algum princípio vital, de que uma energia nova emanasse deste ato, restaurando/salvando vidas às custas dessa renúncia mortal. Poderíamos inferir algo de culpa mais madura predominando? Um sacrifício com finalidades políticas?
Ou, acrescentaria no caso em estudo, uma vingança consciente e reparadora engendrada como única saída, diante da consciência da falência do Estado para desmascarar os fatos. Um sacrifício propicia e excita os afetos ambivalentes deste protetor que falhou em sua promessa de proteger a esposa e o filho quando Tessa estava grávida.
Ao perceber como falhou, pode-se conceber a culpa e o penar de Justin em relação a Tessa. Assim, seu sacrifício contém não só aspectos destrutivos e reparadores em relação à esposa e seus detratores, mas também uma expiação masoquista contra si mesmo.
Na expiação masoquista, teríamos uma possibilidade de explicação da força interna motivadora para o auto-sacrifício e, quiçá, uma justificativa para sua utilização como arma de transformação da realidade dos fatos na política. O que nos aproximaria de atitudes contemporâneas que ilustram estas tendências nas mais diversas formas de ação.
Há autores que preconizam a manifestação de derivados desses ritos sacrificiais primitivos deslocados e disfarçados em ideologias políticas mascaradas que utilizam o eufemismo (dar voltas e ou evitar diretamente assuntos desprazerosos) e o tecnicismo (idealização dos avanços tecnológicos, banalizando e tornando comuns certos procedimentos alegando algum grau de sacrifício necessário) para manipular as massas.
Na seqüência final da cerimônia fúnebre na igreja, diante de Deus e em busca da justiça, Justin, de corpo presente, parece incorporar a vitalidade de Tessa ausente ou inibida nele mesmo. No altar oficial de celebração dos sacrifícios argumenta-se e denuncia-se num tribunal improvisado.
No final do filme, três colunas de mulheres emergem da margem do bosque. As imagem imponentes das negras sudanesas, altivas em seus 1,80 m, com o majestoso andar africano, - sonho impossível de toda passarela de moda,- sugerem a falência de uma política em que os homens fazem a guerra, e as mulheres fazem as casas.
Essa imagem contém uma verdade psicológica alicerçada às bases do psiquismo, e tem importante repercussão social e política: a construção da força de Eros para neutralizar Tanatos através dos cuidados maternos na origem da vida.
O empenho e dedicação ao bem-estar de nossos sucessores é o que nos torna realmente ricos e bem sucedidos. Proteger essa relação é também uma das funções do Estado e das ações destinadas a promover a saúde mental. Ao final, esta é a essência de um drama entre a consciência individual e as cobiças corporativas. Um drama em torno do qual, nesta sala de cinema, aqueles que estão em busca de respostas para os grandes enigmas da vida puderam sentar-se e buscar um refúgio temporário.


Bibliografia Consultada
Andresen, J. J. (1984). The Motif of Sacrifice and the Sacrifice Complex. Contemp. Psychoanal., 20:526-559
Bunker, H. A., Jr. (1933). The Meaning of Sacrifice. Psychoanal Q., 2:154-157
Freud, S. (1913). Totem e Taboo. S. E., 13.
Meissner, W. W. (1996). In The Shadow Of Moloch: The Sacrifice Of Children And Its Impact On Western Religions. J. Amer. Psychoanal. Assn., 44:293-297
Spiegel, R. (1997). From Myth to Psychoanalysis. The Epic of Gilgamesh. Contemporary Psychoanalysis 33: 189-209
Steiner, J. (1990). The Retreat from Truth to Omnipotence in Sophocles' Oedipus at Colonus. International Review of Psychoanalysis 17: 227-237
Whitehead, C. C. (1987). On Prometheus. Int. R. Psycho-Anal., 14:527-540.


*The constant gardener, de Fernando Meirelles, roteiro: Jeffrey Caine, atores: Ralph Fiennes, Rachel Weiz, fotografia: Cesar Charlone, música: Alberto Iglesias


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