vendredi 27 février 2009

Lou Andréas-Salomé







“No mais profundo de si mesmo, o nosso ser rebela-se em absoluto contra todos os limites. Os limites físicos são-nos tão insuportáveis quanto os limites do que nos é psiquicamente possível: não fazem verdadeiramente parte de nós. Circunscrevem-nos mais estreitamente do que desejaríamos.”

Lou Andréas-Salomé, de Stéphane Michaud, Ed.Asa, Lisboa, 2001.



Dela disse Nietzsche, um dia, ser “de longe, a pessoa mais brilhante que conheci”. Se a afirmação é ou não verdadeira tal não é pertinente, antes revela claramente o fascínio que a figura desta mulher exerceu sobre os intelectuais mais importantes da sua época, como Nietzsche, Rilke e Sigmund Freud. Na figura de Lou confundem-se a personagem histórica e a lenda. A biografia escrita por Stéphane Michaud procura esclarecer os contornos que constituíram a personalidade controversa desta mulher que foi romancista, poeta, ensaísta, psicanalista e uma pioneira do modernismo europeu.



Famosa pela sua beleza e notável inteligência, Liolia [1] von Salomé nasceu em São Petersburgo, a 12 de Fevereiro de 1861, filha de Louise Wilm e de Gustav von Salomé, um alemão dos países bálticos, quinze anos mais velho. Descendente de hugenotes de Avignon, ocupava o cargo de conselheiro secreto do soberano, na corte imperial. Pertencendo às altas esferas da nobreza, Louise Wilm recebeu as felicitações do czar pelo nascimento de Lou, que foi educada no luxo cosmopolita da corte, condição que lhe permitiu desfrutar de uma ampla liberdade, assim como de um ambiente propício ao contacto e à aprendizagem das correntes filosóficas e literárias em voga. Com o seu estatuto de única menina (nasceu quando o pai já tinha 53 anos) foi excessivamente protegida, numa família de cinco rapazes, dos quais apenas sobreviveram três, Alexandre, Robert e Eugène, mais velhos que ela, respectivamente, em doze, nove e três anos. A presença tutelar dos irmãos projectar-se-á, posteriormente, sobre todos os homens que Lou conheceu. Igualmente, a figura do pai transformar-se-á numa figura omnipresente que a dominará por toda a vida.



Arrapazada, de cabelos curtos e frisados, a criança Lou revelou cedo os aspectos que iriam marcar a sua singularidade: um olhar independente e firme, uma personalidade enigmática e uma tendência imaginativa, que a levava a fechar-se na solidão de um mundo encantado. Durante a adolescência, o mais pequeno pretexto servia para que o pai a libertasse de todas as obrigações - o que terá contribuído para um alheamento em relação às actividades que ocupavam as outras jovens. Mais tarde, em adulta, ela sublinhará à amiga Frieda von Büllow a singularidade da sua infância, referindo que tinha sido o período menos feliz da existência [2].



O espírito crítico de Lou conduziu-a a uma atitude de descrença perante a religião. Recusando o ultra-conservadorismo do pastor Dalton, sedenta de independência e impaciente por viver, foi rejeitando, cada vez mais, a fé em Deus. Com a morte do pai, as esperanças de pacificação com a religião e com Deus desapareceram por completo. Poucas semanas após essa perda, e tendo ouvido falar de Gillot, um pregador em voga, defensor de novas ideias religiosas, dirigiu-lhe uma carta que era um pedido de socorro desesperado e na qual suplicava que a libertasse de dúvidas. Foi às escondidas que, no início, o ouviu pregar.



A intrepidez, inteligência e a sede de aprender de Lou atraíram Gillot que tomou a sua educação a cargo. Lou tinha dezassete anos e Gillot quarenta e dois. Era casado e pai de dois filhos. Lou representou para ele, não apenas um sonho de pedagogo, como transferiu para esse homem a imagem do pai perdido. A educação não se limitava apenas à religião, mas visava igualmente prepará-la para os estudos universitários que fará em Zurique, na Suíça, um dos raros países tolerantes que aceitava mulheres nos cursos superiores.



Gillot apaixonou-se por Lou e propôs-lhe casamento, perspectivando o divórcio. Embora o sentimento de Lou fosse recíproco, como mais tarde nas suas Memórias deixou transparecer [3], fugiu de Gillot, que lhe surgia como um obstáculo à sua liberdade, exactamente como fugirá, mais tarde, de outras relações com Paul Rée, Nietzsche e Rilke, quando justamente a pediram em casamento. O fascínio por Gillot desintegrou-se brutalmente e confessará posteriormente que no seu universo não havia lugar para o desejo nem para o sexo, nem tão pouco, espaço para um casamento.



Em Setembro de 1880, Lou partiu para Zurique, onde estudou lógica, história das religiões e metafísica. Ainda que se revelasse sobredotada, a sua saúde era frágil. Durante este período confirmou também a sua vocação literária, retomando os poemas escritos nos tempos da sua relação com Gillot e procurando publicá-los em diversos círculos universitários ligados a revistas literárias. No ano seguinte, em Abril, viajou até Roma, onde o clima mais ameno lhe permitiu o restabelecimento da saúde. Tinha pedido ao seu amigo Kinkel uma carta de apresentação para um dos espíritos mais livres do seu tempo: Malwida von Meysenburg. Européia convicta e adepta do livre pensamento, Malwida sonhava com uma sociedade humana liberta das cadeias da religião e dos seus dogmas, lutando para que artistas e filósofos conquistassem o lugar privilegiado que deveriam ocupar. Defendia ousadamente os direitos das mulheres e a sua participação na vida colectiva. As suas idéias arrojadas tinham-lhe valido o exílio definitivo da cidade natal e da Prússia. Pedagoga, ensaísta e romancista, melómana, Malwida tinha, aos sessenta e cinco anos de idade, uma carreira repleta atrás de si. O tempo de exílio que havia passado em Londres transformara-a numa acérrima e feroz defensora de Wagner, que havia conhecido em Londres. Malwida seguia atentamente tudo o que se passa em França. À sua volta formara um círculo de intelectuais, de escritores e artistas que defendia, apoiava e protegia da intolerância e incompreensão dos seus contemporâneos. Tinha acolhido Nietzsche e dois dos seus amigos em Sorrento, numa villa nas encostas do Pausilipo, onde o odor das laranjeiras se confundia com a brisa marítima. Doente, Nietzsche havia pedido à universidade de Basileia uma licença de longa duração e estava acompanhado por dois amigos. Um deles era o jovem discípulo Brenner, que lhe servia de secretário, e o outro era o filósofo Paul Rée, mais novo que ele cinco anos. Este ultimo concluía a sua obra A Origem dos Sentimentos Morais, enquanto Nietzsche trabalhava na redacção de Humano, Demasiado Humano. O estado de saúde de Nietzsche melhorara nesse Outono, permitindo-lhe visitar a família Wagner, que habitava nas proximidades. Porém, quando Lou chegou, na Primavera de 1882, a atmosfera tinha-se alterado substancialmente. A relação com Wagner degradara-se e Nietzsche sentia na pele as consequências do facto. A universidade de Basileia transformou a sua licença de um ano numa reforma definitiva o que contribuiu para um novo agravamento do seu estado de saúde. Rée, cujo temperamento neurótico já era visível, também não foi poupado. Quanto a Malwida, investiu toda a sua paixão nessa mulher-criança, cujo brilho intelectual e audácia a fascinavam. Lou conheceu então Paul Rée, sentindo-se cativada por este jovem filósofo de trinta e três anos, de espírito aventureiro e dado ao vício do jogo. Propôs-lhe viverem juntos, partilhar a casa e o amor aos livros e reunir em torno de ambos, os outros espíritos filosóficos. Rée, desconcertado, pediu-a em casamento o que provocou a cólera de Lou que imediatamente o rejeitou, explicando-lhe que desde a sua relação com Gillot tinha posto um ponto final à sua vida amorosa. Nessa altura e julgando servir os interesses de Lou, Rée escreveu a Nietsche, que se revelou predisposto a aceitar uma relação a três, (igualmente fomentada pela sua amiga Malwida), desembarcando de improviso em Roma à procura da “Russa” e do amigo. Imediatamente seduzido pela jovem, Nietzsche encarregou Rée de lhe servir de intermediário para lhe pedir a mão, o que provocou uma nova recusa por parte de Lou, que exigiu que Rée explicasse a Nietzsche a sua aversão pelo casamento e a perda financeira que isso representaria para ela, pois teria de renunciar à pensão que recebia das autoridades russas, na qualidade de aristocrata órfã. Mas a natureza solitária e a inteligência de Nietzsche não a deixaram indiferente. Sentindo-se demasiado atraída pelo filósofo, refreou essa atracção e refugiou-se na relação terna e protectora de Paul Rée, que a amava e que sofria com a sua indiferença física.



Nietzsche continuava obcecado pela ambição de formar um discípulo que pudesse ser iniciado na sua filosofia e a inteligência e independência de Lou imprimiram um novo rumo à sua existência. Em Lucerna, no Löwengarten, onde voltaram a reunir-se mais tarde, Nietzsche pediu-a novamente em casamento mas Lou manteve a sua recusa obstinada, deixando o filósofo estarrecido com a declaração de que lhe interessava unicamente cumprir a vontade de viver e entregar-se ao estudo da filosofia e da literatura.




Perante os projectos de Lou, que mantinha firme a ideia de viver com os dois filósofos, os irmãos tentaram demovê-la e impedir o escândalo, procurando fazê-la regressar a São Petersburgo. É Paul Rée, que ganhara a confiança da mãe de Lou, quem irá intervir no sentido de atenuar as tensões familiares. Entretanto, Nietzsche introduzira Lou no seu círculo de artistas e intelectuais de Bayreuth, onde ela provoca uma onda de choque pela sua audácia. A irmã de Nietzsche, Elisabeth, via com maus olhos as atitudes daquela jovem mundana e cheia de vitalidade, chegando a provocar altercações violentas e tentando, a todo o custo, destruir a relação entre Lou e o irmão. Por fim, o amor de Nietzsche transformou-se em amargura e decepção. A sistemática recusa de Lou levou-o ao desespero, à beira do suicídio. Só a embriaguez do ópio o salvava dessa dor lancinante, cuja experiência, depois de amadurecida o levou a começar a escrever Assim Falava Zaratustra. Em Fevereiro de 1883, o filósofo redigiu a primeira parte da obra em apenas dois dias. A fulgurância da sua prosa aproximava-se da leveza da poesia, onde a metáfora da dança ocupava um lugar importante. Foi assim que Nietzsche se libertou do fascínio que Lou exercia sobre ele. Jamais voltariam a encontrar-se. Na verdade, a sua irmã Elisabeth minara todas as relações entre os membros do círculo e instrumentalizara todos ao seu serviço: Rée e a mãe, Peter Gast, o músico, a própria Malwida. Não se sabe até que ponto Nietzsche terá finalmente compreendido os nefastos efeitos da teia de intrigas produzida por Elisabeth. No entanto, sabe-se o suficiente para reconhecer que, a partir de certa altura, Nietzsche rompeu com a irmã que acabou por partir para o Paraguai, onde casou com o teórico racista Bernhard Förster. O debate suscitado e os escândalos daí resultantes, alimentando a voracidade de um público ávido, remeteu Lou para um silêncio do qual não voltou a sair. (Mesmo quando Freud, muitos anos mais tarde, a insta a falar sobre o assunto, ela recusa). Respondeu sempre com um muro de silêncio que não a beneficiava, uma vez que não contribuía para clarificar a situação. Todavia, o afastamento de Nietzsche não lhe causou tanto dano que não permitisse que ela continuasse unida a Rée, encontrando, junto dele, não apenas a atenção e a ternura redobrada, como um certo apaziguamento. Quanto a Paul, a presença benéfica de Lou contribuiu para o afastar da paixão pelo jogo e para um reencontro com a tranquilidade. Juntos, reuniram à sua volta alguns dos espíritos mais promissores da época, na sua grande parte alemães e berlinenses, mas também dinamarqueses, como o crítico Georg Brandes, um dos primeiros autores a compreender o impacto da filosofia de Nietzsche, e livonianos, como o barão Carl von Schulz. Destes personagens próximos de Lou, eclodirão novas ciências e rumos decisivos, como é o caso de Hermann Ebbinghaus, fundador da Psicologia, e Ferdinand Tönnies, fundador da Sociologia.



Alguns deles declarar-se-ão a Lou e ela recusará todos os pedidos, convertendo-os em amigos enquanto mantém Rée junto de si. Em 1886, porém, o amigo sentir-se-á traído. A 1 de Novembro, a celebração do noivado secreto de Lou com Andreas, de cuja chegada Rée não se apercebera e que irá ocupar o seu lugar, obriga-o a partir, em princípios de 1887, pondo termo a quatro anos de vida em comum. Rée pediu a Lou que não voltasse a procurá-lo. O sentimento de culpa atormentá-la-á mais tarde, ao saber que Rée foi encontrado morto, em 1901, em circunstâncias estranhas.



Quer Malwida, quer Rée, tão próximos de Lou, ignoravam tudo acerca de Andreas. Porque razão, a certa altura, Lou decidiu casar? O que a terá motivado? A diferença de idades era considerável. Ele tinha 41 anos e ela 26. Príncipe e beduíno do deserto, numa sociedade na qual não se integrava e cujas regras tinha dificuldade em aceitar, era uma figura singular, tanto pela linhagem como pela experiência de vida, pois era filho de um arménio e nascera na Indonésia, em Jacarta. Quando jovem estudara no liceu de Genebra e destacara-se como aluno brilhante pelas suas aptidões musicais e linguísticas. Consagrara-se ao estudo das línguas orientais e tinha obtido o doutoramento em 1868, dedicando-se à leitura de manuscritos persas raros, nas bibliotecas de Copenhaga. Em 1870 a guerra interrompera as suas investigações e ele conseguira uma regência provisória na universidade de Kiel.



Para Lou, Andréas encarnava, em toda a sua perfeição, o ideal do sábio universal das épocas anteriores, o príncipe e o camponês, segundo o modelo russo. A aventureira deixara-se fascinar por esse poliglota que se afastava dos intelectuais que ela conhecera até então. Andreas destacava-se deles por uma “soberania das mais reais”, fazendo-a sonhar com viagens à Pérsia e indo ao encontro do seu lado selvagem e transmitindo-lhe um misto de doçura e de rebeldia que tanto impressionaram o dramaturgo Hauptmann e, posteriormente, Rilke e Freud. O casamento, nada convencional, foi realizado a 14 de Junho de 1887 e, alguns dias mais tarde, Gillot, a quem Lou se recusara na consumação do amor carnal, celebrou uma missa que envolveu Lou de modo mais profundo, oficiando e simbolizando a preservação do interdito, no seio do novo casal.



O projecto de vida comum estabeleceu-se com base numa comunhão de gostos e de estudos, tratando-se de uma união puramente intelectual. Lou obteve de Andreas a garantia formal de que nunca teriam filhos. Revoltava-se contra a ideia de pôr no mundo uma criança indesejada e não suportava a ideia de dar à luz. Repudiava qualquer ligação entre amor carnal e casamento, uma convicção, que Andreas esperava ver alterada, mas jamais se modificará.



O temperamento de Andreas contribuiu para que a actividade social da mulher diminuisse. O seu perfeccionismo e a permanência no Oriente haviam-lhe produzido uma estranheza relativamente aos hábitos universitários. Não conseguiu entregar, dentro dos prazos estipulados, a dissertação que lhe daria acesso ao lugar de professor, passando por reveses humilhantes. Entretanto, dedicava-se a estudar e a escrever um ensaio sobre a obra de Ibsen e de Nietzsche, de quem conservara as cartas.



Em 1890, a adesão do casal à Associação do Teatro Livre veio proporcionar a Lou os contactos que faltavam. Foi Georg Brandes, crítico dinamarquês, que redigiu uma carta de apresentação para o Deutsche Rundschau. Quanto a Wilhelm Bölsche, crítico, romancista e ensaísta, introduziu o casal no círculo de Friedrichsagen, onde residia. Lou conheceu aí jovens escritores para quem a literatura, bem longe de ser um passatempo frívolo, era um imperativo de ordem existencial, um conceito a que imediatamente aderiu, tendo começado a escrever para duas publicações berlinenses de renome e participando da vanguarda literária e artística mais prestigiada da época, com Tolstoi, Maupassant, D’Anunzio a Knut Hamsun. Em 1892 publicou o estudo que originará mais tarde o ensaio Personagens Femininas em Ibsen e, quatro meses mais tarde, escreverá uma série de artigos sobre Nietzsche, os quais serão incluídos num volume futuro intitulado Friedrich Nietzsche nas suas Obras (Viena, 1894).



Nesta boémia literária, cuja fantasia a afastava da austeridade e da disciplina do círculo de Rée, a mulher de quase trinta anos conheceu Georg Ledebour, conhecido pela sua liberdade, que o impedia de se subjugar à religião ou às convenções sociais. Foi essa fusão entre delicadeza e firmeza que atraiu Lou. Embora sensível ao fascínio desse terno amigo que lhe declara o seu amor, Lou resistiu-lhe mas tal paixão acarretar-lhe-á uma profunda crise, no casamento.



Esse aspecto doloroso da sua vida irá reflectir-se na sua obra, numa fase em que escreve com uma tenacidade obstinada, uma actividade que foi injustamente negligenciada, em virtude da sua dispersão por várias colunas de jornais. Dedicou-se igualmente à ficção, publicando, em 1885 Combate Por Deus e, em 1895, Ruth, o seu segundo romance, onde trata, ainda, a sua obsessão por Gillot.



Em 1894, no final de Fevereiro, a escritora desembarcou em Paris, onde foi aceita pela sociedade boémia e literária e conquistou a admiração dos críticos mais influentes, como escritora e ensaísta. Começou a corresponder-se com Schnitzler, que ela admirava profundamente e que irá, mais tarde, reencontrar em Viena. Mas em relação a esse tempo de Paris, onde redescobriu os prazeres mundanos, Lou confessou um certo desencanto, provocado por um afastamento do seu trabalho. De volta a Berlim, permaneceu aí durante o tempo estritamente necessário. Trazia de tal modo entranhado o gosto pelas viagens que partiu, ao fim de seis meses, para S. Petersburgo onde reviu a família e Gillot. Regressada a Viena, onde a atmosfera era semelhante à de Paris, encontrou Schnitzler e travou conhecimento com Hofmannsthal, Beer-Hofmann e Friedrich Pineles, o médico a quem se ligará numa intensa e duradoura relação. Pineles tinha na altura vinte e sete anos e Lou trinta e quatro. Nessa sociedade brilhante, extremamente requisitada e apreciada pela sua capacidade de comunicação, Lou revelava uma lenta eclosão, que fez com que Schnitzler traçasse dela o retrato de uma mulher volúvel, deslumbrante e desinibida, de uma euforia e um gosto pela vida invulgares e anotasse no seu diário esta curta mas decisiva frase: “A mulher começa a despertar em Lou” [4].



Quando Lou e Rilke se encontraram, o poeta era um jovem de 21 anos, com um talento prodigioso, em busca de reconhecimento literário. Colaborava em vários jornais e revistas e era, ele próprio, editor de uma revista que pretendia divulgar as novas tendências da poesia. A relação que se estabeleceu entre ambos foi a de uma mãe-amante para com um filho. No final de Maio, procuraram um refúgio nas montanhas, longe do bulício da cidade. Foi sob o olhar de Lou que Rilke iniciou um novo período de intensa produtividade literária, enquanto procurava compensar, a relação frustrada com a sua própria mãe, nunca inteiramente recuperada pela morte da irmã mais velha. Essa maternidade assumida em relação ao jovem poeta encontrou a sua primeira representação simbólica num baptismo. Rilke tinha recebido o nome próprio de René Maria. Lou, fascinada pelo ardor do poeta e pela sua virilidade amenizada pela doçura, procedeu a um requilíbrio em benefício do elemento masculino: converteu o nome René em Rainer. Esse renascimento, a que Lou preside, não se limita apenas ao nome e arrasta o poeta para um despojamento e para uma simplicidade que libertam a sua poesia de todo o sentimentalismo, obrigando-o a voltar à essencialidade e à celebração claramente existencial, da vida e do mundo. Stéphane Michaud [5], na sua biografia, refere que a fase mais intensa da paixão entre ambos ocorreu entre 1897 e 1901, mas Lou, de comum acordo com Rilke, queimou as cartas relativas a esses anos e só é conhecida a troca de correspondência a partir de 1903 até 1921.



A 26 de Abril de 1898, Rilke, Andréas e Lou deixaram Berlim em direcção a Moscovo. Sobretudo após esta segunda visita, o poeta reconheceu que a Rússia se tornara o seu mundo e a escrita permitiu-lhe transfigurar essa viagem espiritual. Os viajantes partilhavam a mesma paixão pela Rússia antiga, pelas suas paisagens e pelo seu povo e Rilke compôs, em Agosto desse mesmo ano, o ciclo dos «Czares», (seis peças que integrarão a segunda edição do Livro das Imagens, que sairá em 1906), e depois, em Setembro e Outubro, «As Preces», que constituirão o original do que virá a ser o Livro das Horas (1905). Rilke também se dedicou à aprendizagem da língua russa, tendo traduzido A Gaivota, de Tchekov, bem como os poemas do poeta camponês Drojine.



Paradoxalmente, esta viagem afasta Lou de Rilke. O seu diário deixa compreender como a imagem do pai se sobrepõe à do amante. A angústia existencial de Rilke indispunha-a, transformando-o numa figura ameaçadora. Incomodada pela sua presença, aos quarenta anos e reencontrando na mítica Rússia a serenidade desejada, Lou sentiu-se incomodada pela presença de Rilke, forçando-o a partir. Sem remorso, considerou natural que se afastassem para que ambos pudessem crescer.



Sob a orientação do psicoterapeuta sueco Poul Bjerre, Lou iniciou-se no estudo da Psicanálise, acompanhando-o ao congresso internacional em Weimar, em Setembro de 1911. Mais tarde, afastando-se da posição teórica de Bjerre, que se distingue de Freud, Lou tornou-se de uma fidelidade inquebrantável relativamente ao fundador da psicanálise, durante vinte e cinco anos. Só a morte de Lou porá termo a essa relação. Freud confiou-lhe também a orientação da filha Anna, estabelecendo-se entre os três uma cumplicidade intensa. Depois da Guerra, quando Lou sofreu dificuldades económicas, foi o seu dedicado amigo Freud quem a ajudou. Na última fase da sua obra, Lou procurou conciliar a influência da psicanálise - ela própria torna-se psicanalista - com a literatura. Nasceram dessa confluência, os seus mais estranhos contos, povoados por figuras e personagens que se apresentavam como representações simbólicas intensas. De alguma forma, a sua obra surgiu integrada numa contra-corrente literária, pois na literatura alemã distinguiram-se outros autores, mais marcados pela vanguarda da estética expressionista, mais trabalhada pela política, como é o caso de Döblin, de Kastner ou, ainda, de Werfel. Finalmente, Lou escreveu As Memórias, obra que se revelará posteriormente, como um manancial e um testemunho da sua vida, mas onde a sua postura se mantém discreta e reservada, mesmo relativamente aos factos mais importantes e relevantes. Lou sabia exactamente que compunha a derradeira imagem com que havia de deixar o mundo: a de uma mulher com uma beleza que a acompanhará até ao final da sua vida, tendo sempre do seu lado a vida (como dela disse um dia Rilke) e uma capacidade de dádiva que apenas se encontra nas almas superiores. Disso são prova as relações constantes e duradouras que manteve com os homens (amigos e amantes) até ao final da sua vida que terminou a 5 de Fevereiro de 1937, pouco antes de completar sessenta e seis anos.



Lou teria gostado que as suas cinzas fossem dispersas pelo seu jardim. Esse desejo seria, certamente, o modo poético de reconciliação com a terra, o elemento que ela tinha amado. Porém, as autoridades recusaram-lhe esse gesto último e a urna foi enterrada ao lado do corpo de Andreas.



Uma morte discreta a celebrar o esplendor do que foi a sua vida, guiada por uma liberdade radical.



Notas

1 - É Gillot quem, mais tarde, lhe dará o nome de Lou.

2 - Stéphane Michaud, op. cit., p.34.

3 - E também nos poemas "Prece à vida" e "A Dor"


4 - Diário de Schnitzler, 1893-1902.

5 - Na obra biográfica, já anteriormente citada, Lou Andreas-Salomé, p.155



Nota do Editor

Texto publicado originalmente na Revista Storm, editada por Helena Vasconcelos em Portugal. (Foi mantida intacta também a grafia original.)




Maria João Cantinho

Lisboa, 3/7/2002

vendredi 20 février 2009

Entrevista com Jean Laplanche

Entrevista concedida, em 04 de outubro de 1996, ao membro da Comissão de Redação Raul Hartke

O Dr. Jean Laplanche é analista titular, ex-presidente da Association Psychanalytique de France e professor honorário de Psicanálise na Sorbonne - Universidade de Paris VII.

É o diretor científico e responsável pela terminologia da tradução francesa das Obras Completas de Freud e autor - juntamente com Pontalis - do internacionalmente reconhecido "VOCABULÁRIO DA PSICANÁLISE". Seu profundo conhecimento e capacidade de rigorosa reflexão crítica sobre o pensamento freudiano podem ser constatados nos cursos que ministrava na Universidade, transcritos na coleção "PROBLEMÁTICAS". Além disso, a originalidade e criatividade do seu pensamento evidenciam-se em sua "Teoria da sedução generalizada".

As seguintes obras suas estão traduzidas para o português:

1. Halderlin e a Questão do Pai (1961), Jorge Zahar Editor.
2. Vocabulário da Psicanálise (em colaboração com J.B.Pontalis) (1967). Editora Martins Fontes.
3. Fantasia Originária, Fantasias das Origens e Origens da Fantasia. (em colaboração com J.B. Pontalis) (1967), Jorge Zahar Editor.
4. Problemáticas I (1980): A angústia, II (1980): Castração/Simbolizações, III (1980): A sublimação, IV (1981): O inconsciente e o Id, V, (1987): A tina, Editora Martins Fontes.
5. Vida e Morte em Psicanálise (1985), Editora Artes Médicas.
6. Novos Fundamentos para a Psicanálise (1987), Editora Martins Fontes.
7. Traduzir Freud (em colaboração com Cotet e Bourguignon) (1989), Editora Martins Fontes.
8. Teoria da Sedução Generalizada (1988), Editora Artes Médicas.

De formao inicialmente filosófica, o Professor Laplanche analisou-se com Lacan e posteriormente cursou Medicina.

Além de eminente psicanalista, Jean Louis Laplanche é um conceituado produtor de vinho, proprietário de um renomeado "domaine" na regi?o da Borgonha. Seu vinho, o "Cháteau de Pommard", está incluído entre os grandes tintos da França.

O Dr. Laplanche teve a gentileza e disponibilidade para conceder esta entrevista ao Dr. Raul Hartke, representando, então, a Revista, no seu belíssimo Cháteau, em Pommard, próximo à cidade de Beaune, justamente num momento importante da vinificação.

A psicóloga Leonor Guiromand auxiliou na tradução durante a entrevista.

Previamente ao encontro, a Revista lhe enviou as seguintes questões, sublinhando que ele poderia responder quais e na ordem que desejasse, ficando, também, totalmente aberta a possibilidade de outros tópicos serem levantados e desenvolvidos no transcorrer da entrevista:

1 - Conhecemos e estudamos o Prof. Laplanche, tradutor fundamental de Freud, incluindo uma obra especificamente sobre esse tema. Conhecemos também o Prof. Laplanche, exegeta de Freud, tanto, por exemplo, no "Vocabulário da Psicanálise" como na série "Problemáticas", na qual, como o próprio Professor gosta de destacar, o criador da Psicanálise é "posto a trabalhar". Conhecemos e estudamos, finalmente, o Prof. Laplanche como autor psicanalítico, com sua teoria da sedução generalizada que proporia, inclusive, novos fundamentos para a Psicanálise. Levando em conta todo esse seu cabedal de pesquisa, estudo, reflexão e criação, nós o consideramos uma das pessoas mais indicadas para perguntar sobre o que o Sr. considera como sendo os principais desafios quanto à teoria e quanto à prática psicanalíticas nesta virada do século?

2 - Ainda dentro do espírito da pergunta anterior, ocorreu-nos que, no próximo ano-1997- estaremos comemorando o centenário do desaparecimento (manifesto) da "neurôtica" (a teoria da sedução) e do aparecimento do complexo de édipo, transição essa muito bem dissecada pelo Sr. Como o Sr. considera que está a situação do complexo de édipo, cem anos depois? Levando em conta sua teoria da situação e da sedução originárias, esse complexo ainda continuaria sendo "o complexo nuclear das neuroses" O "édipo" que circula atualmente nos textos psicanalíticos é ainda o mesmo de cem anos atrás? A situação edípica precoce descrita por Melanie Klein constituiria apenas um importante acréscimo à teoria do édipo freudiano ou envolveria, como pensa, por exemplo, Willy Baranger, uma mudança de um aspecto central de toda a teoria do criador da Psicanálise, por confundir, por exemplo, aquilo que é uma prioridade cronológica com uma preeminância na determinação, uma prioridade lógica, pois, segundo esse autor, na ordem lógica, a situação triangular antecede à situação dual.

3 - Numa revisão de 1993 sobre a psicossexualidade e a diferença entre os sexos, no livro "The Gender Conundrum" (Editora Routledge, London & New York), Dana Breen diz, a certa altura, que a nosso de Nachtrachlichkeit, envolvendo uma reestruturação psíquica retrospectiva, a partir do complexo de édipo e da castração, marca uma diferença essencial na concepção geral da Psicanálise entre grande parte dos psicanalistas franceses em relação aos anglo-saxões, esses últimos ligados a uma concepção progressiva linear do desenvolvimento psíquico. Já que o Sr., junto com Pontalis, é um dos responsáveis pela divulgação desse importante conceito resgatado por Lacan da obra de Freud, gostaríamos de saber qual seu ponto de vista sobre essa afirmação. Essas possíveis diferenças conceituais, caso fossem tão fundamentais (a ponto de originar concepções distintas da Psicanálise como um todo), teriam repercussões decisivas na prática clínica? Estaríamos diante de diferentes "modelos" de um mesmo paradigma ou de distintos paradigmas, se é que esse conceito de Khun é aplicável à Psicanálise?

4 - O tema oficial do próximo congresso da IPA, em Barcelona, será a sexualidade e consideramos que o Sr. tem coisas muito importantes para dizer a respeito dessa questão. Recentemente, num artigo publicado no IJPA, intitulado "Has sexuality anything to do with psychoanalysis?" (1995), Dr. André Green disse que a sexualidade, considerada por Freud como central no desenvolvimento psíquico, na teoria psicanalítica e no trabalho clínico, tem sido negligenciada pela Psicanálise atual e que, inclusive, o conceito atual de sexualidade não é o mesmo de Freud. Qual o seu ponto de vista a esse respeito?

5 - O Sr. considera possível uma "teoria clínica" psicanalítica que dispense a "bruxa" metapsicologia?

6 - No livro "Novos Fundamentos para a Psicanálise", o Sr. diz que "a situação analítica instaura uma relação originária com o enigma e com o seu portador" e que, nesse contexto, o essencial é a recusa do analista "do saber" e "de saber", sendo esse o motor que propulsiona o tratamento, pois "é a corrida atrás do saber que sujeita e propulsiona o analisando assim como propulsionou a criança".

Donald Meltzer dê uma importância central, no desenvolvimento humano, ao que ele denomina de "conflito estático", envolvendo a admiração pelo exterior do objeto, diretamente acessível aos sentidos, versus seu interior enigmático, que só pode ser apreendido mediante a imaginação. Esse conflito mobiliza tanto o desejo de conhecer, preservando a liberdade do objeto, como o desejo de possuí-lo ou de violá-lo.

O Sr. veria alguma relação ou alguma possibilidade de articulação de suas idéias acima referidas com o "conflito estático" de Meltzer?

No início da entrevista, realizada no dia 4 de outubro de 1996, o Dr. Laplanche disse que é, ao mesmo tempo, vinicultor e psicanalista e que, no momento, se encontrava em plena atividade de fabricação de seu vinho.

RH - Gostaríamos de lhe agradecer imensamente por nos haver recebido e dedicado um espaço de seu tempo num momento tão importante de suas atividades como vinicultor.

JL - Com efeito, este é um momento de muito trabalho e, sobretudo, porque aqui sou eu mesmo quem faz tudo.

RH - Nós já ouvimos falar muito do seu vinho, o Cháteau de Pommard.

JL - Após a entrevista vocês irão ver um pouco de tudo isso comigo.

RH - É um prazer poder estar aqui e fazer esta entrevista porque o Sr., utilizando uma expressão sua, é um objeto-fonte para nossa atividade diária como psicanalistas e para nossas reflexões teóricas.

No caminho, vindo em direção à sua propriedade, eu pensava numa temática que o senhor aborda muito seguidamente - a questão da teoria da sedução - e dei-me conta de que estamos atravessando um aniversário do período mesmo dessa mudança, pois, no dia 21 de setembro, Freud enviou a carta a Fliess dizendo que havia abandonado sua "Neurotica" e, no dia 15 de outubro, como, aliás, o senhor sublinha, escreveu-lhe a respeito da descoberta do complexo de édipo. Estamos, então, aqui com o Sr., exatamente nos dias correspondentes a essa profunda e decisiva virada no pensamento freudiano.

JL - (Risos) É muito divertido porque, com efeito, estamos na época do equinócio de outono e eu nasci no solstício de verão. Sendo assim, nasci nove meses após o abandono da teoria da sedução, ou seja, fui concebido - isto é obviamente, uma fantasia* - no momento do abandono da teoria da sedução. Nasci no dia 21 de junho, portanto, nove meses após. (Risos).

RH - Uma outra coisa que me pareceu curiosa e interessante é que alguém como o senhor, conhecedor profundo da "bruxa metapsicologia"**, trabalhe igualmente a terra. Lembro-me da passagem do Fausto de Goethe, quando Mefisto sugere a Fausto cultivar a terra ou então procurar a bruxa. E, neste momento, estamos junto a alguém, o Sr., que conseguiu conciliar a "bruxa" e o trabalho da terra. (Risos).

JL - (Risos) Mas o senhor verá daqui há pouco que minhas tinas, onde faço o vinho, são, de certa forma, como o caldeirão da bruxa. (Risos).

RH - Eu gostaria, agora, de ouvi-lo sobre algumas das perguntas que lhe enviamos a titulo de sugestão para um início de diálogo.

* Laplanche emprega aqui a palavra francesa "fantasme". Ver o comentário sobre a tradução desse termo do alemão para o francês no verbete "fantasia", do Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, Editora Martins Fontes, 2a edição, 1991. (N. do R.).

** Alusão a "Fausto" de Goethe na cena intitulada "Na cozinha da Bruxa". A partir dela Freud estabelece uma analogia entre a metapsicologia e a bruxa. Fausto, já com setenta anos, gostaria de remoçar. Mefisto propõe-lhe, inicialmente, levar uma vida simples de agricultor no campo, mas Fausto rejeita essa proposição. Mefisto responde-lhe: "Pois venha então a bruxa, amigo". A bruxa prepara-lhe uma poção mágica, Fausto a ingere e, dessa forma, recupera sua juventude. (N. do R.).

JL - Sim. Eu examinei o primeiro ponto das questões que me foram enviadas, a respeito do desafio para a virada do século. Para mim, existem dois desafios, o prático e o teórico e os dois estão ligados. Entendo o desafio prático da seguinte maneira: a Psicanálise está a perigo de tornar-se uma profissão de saúde. Isso significa estar subordinada ao poder institucional, tanto ao poder institucional das organizações de saúde quanto ao poder institucional das associações psicanalíticas. Acredito que o perigo está também no risco de que as associações de Psicanálise se tornem uma transmissão das demandas sociais de saúde. Isso se observa tanto em relação à prática quanto á formação. Vê-se, cada vez mais aqui na Europa, mas também em outros países, que a prática está subordinada à obrigação de resultados sintomáticos de saúde. O pagamento das curas torna-se cada vez mais um pagamento em função da intervenção de um juiz, poder-se-ia dizer, que julga se o resultado é ou não é bom. Isso significa dizer que a relação psicanalítica não é mais entre dois, existindo um terceiro que intervém, porque paga, porque pede certificados, etc. E afinal, é preciso que se diga - e eu direi as coisas francamente - para resultados socialmente reconhecidos há técnicas mais eficazes que a Psicanálise. A Psicanálise não pode combater baseada no plano do resultado social e da adaptação, mesmo porque, naquilo que diz respeito à adaptação - repito - há muitas técnicas mais eficazes do que a Psicanálise.

Outro perigo, ainda sob o ponto de vista da prática, é que, em função dessa demanda social, a formação enquanto tal se torne uma formação que deve ser aceita e reconhecida pelas instituições. Mesmo a Psicanálise pessoal, que é o fundamento da formação analítica, tende a tornar-se cada vez mais alguma coisa de institucional: é o que se chama de análise didática (training analysis) e eu tenho-me batido, há dezenas de anos, contra a própria idéia de "training analysis". Nós somos, acredito, a única Sociedade que suprimiu completamente a idéia de "training analysis", ou seja, uma análise empreendida e aceita pela instituição. Na medida em que a sociedade psicanalítica deve aceitá-la, ela deverá, também, mais cedo ou mais tarde, prestar contas à instituição estatal. Na nossa Associação, que se opõe completamente às regras da IPA - embora estejamos na IPA - tomamos, então, uma posição radical em relação a esse ponto de vista, ou seja, suprimimos completamente a Psicanálise didática. Para nós a Psicanálise, seja ela de formação ou de cura, é uma coisa puramente pessoal, que deve ser empreendida de maneira absolutamente pessoal, sem a intervenção da instituição em nenhuma instância.

Acredito que, atualmente, fora dessa questão um pouco técnica, o grande perigo para a Psicanálise é aquele de ser confundida com uma técnica psicoterapêutica. Na minha opinião é o primeiro desafio que traz o risco de suprimir a Psicanálise, mesmo que o nome subsista. O nome provavelmente subsistirá, mas a coisa não, ou seja, os verdadeiros psicanalistas serão forçados a encontrar um outro nome. Na Europa vemos muito disso, mas acredito que, sob outras formas, também na América do Sul e, sob outras formas ainda, nos Estados Unidos. Na Europa, a institucionalização caminha muito rapidamente: vê-se isso na Alemanha, na Holanda, etc. A França é um dos raros países onde a Psicanálise permanece uma profissão que não é verdadeiramente uma profissão, uma profissão não reconhecida enquanto tal. Isso é tudo para rapidamente dizer qual é o desafio prático o qual, acredito, é o maior desafio e que não sei como vamos ultrapassar.

Agora, naquilo que diz respeito à teoria e é metapsicologia eu, diria que, efetivamente, o desafio é de extrair todas as conseqüências da experiência freudiana e, a partir daí, renovar a teoria. É o que procurei fazer com a teoria da sedução.

RH - Colocar Freud a trabalhar, como o senhor tanto gosta de dizer...

JL - Sim, eu acredito que é, inicialmente, fazer trabalhar Freud, mas há um momento em que já se fez com que Freud trabalhasse bastante e, então, é preciso trocar as coisas, não é assim? Acredito que uma noção como a de "mensagem" substitui a noção de "representação", que a noção de "outro" tomou o lugar da de "objeto" e que o primado do outro, na constituição do sujeito sexual, é algo que faz uma revolução no pensamento de Freud.

RH - Seria possível falar um pouco mais a respeito dessa substituição da noção de "representação"?

JL - A noção de representação permanece uma noção subjetiva ligada à idéia do primado do sujeito, ou seja, em última instância, uma noção solipsista : não saímos da pessoa que "se" representa alguma coisa. Freud nào saiu dessa noção de representação.

Acredito que a perspectiva muda completamente, a partir do momento em que pensamos que aquilo que acontece ao sujeito não são somente percepções e representações, mas "mensagens" significativas vindas do outro.

RH - Isso estaria incluído na sua teoria da sedução generalizada?

* No original: "des traces".

JL - Sim. Se quiser, podemos também tomar o exemplo da diferença entre "traço"* e "mensagem". Robinson (Cruso?), na sua ilha, vê passos na areia: são traços, são representações. Podem ser tanto traços de um homem como de um animal ou mesmo traços de um meteorito: são representações. Nós ficamos, então, numa situação que eu chamo de ptolomaica, ou seja, na qual Robinson se considera como o centro do mundo: ele deve interpretar os signos. Mas, ao contrário disso, se ele vê que as impressões* de passos estão organizadas para indicar uma direção, nesse momento, não se trata mais de traços mas, sim, de mensagens. E aquilo que a criança e o ser humano devem interpretar não é um mundo abstrato de percepções e de representações, é um mundo de mensagens, onde já há sentido que é enviado pelo outro. É o que chamo de "reversão copernicana da perspectiva"**, ou seja, do mesmo modo que Copérnico compreendeu que a terra rodava ao redor do sol e não o sol ao redor da terra, o ser humano deve compreender que ele se move ao redor do outro e não que o outro é, pura e simplesmente, sua percepção.

Gostaria de falar de Melanie Klein, porque, num certo momento, vocês se referem a ela. Ela também, como Freud, fica num mundo subjetivo, ou seja, quando fala do objeto, esse objeto é um objeto "para" a criança: ele é bom ou ele é mau, porque a criança projeta sobre ele suas pulsões boas ou más, mas não há a idéia de que entre a criança e o adulto não existe objeto, mas, sim, mensagens. Os objetos são enviados para dizer alguma coisa, os objetos já estão cheios de significação, são os significantes ou as mensagens. Em Freud, tanto quanto em Melanie Klein os objetos estão sempre colocados em rela??o com a "minha percepção" do objeto. Em outros termos, o próprio Freud ficou na antiga tradição européia da filosofia que também é a do sujeito, na centralização no sujeito, filosofia de Descartes, de Kant e de tantos outros. Mesmo para os fenomenólogos, é sempre o mundo que é "minha representação". Ora, eu digo, o mundo não é somente minha representção - e eu não nego que existam representações - mas o mundo é habitado por mensagens que comportam sentido antes que eu tenha necessidade de dar-lhes sentido.

RH - ...E que vão provocar, em mim, a necessidade de um trabalho de tradução...

* No original: "les empreintes".
** O último livro publicado pelo Dr. Laplanche, ainda não traduzido para o português, intitula-se "La révolution copernicienne inachevíe" (Editora Aubier, 1992).

JL - Certamente e isto é a parte da tradução na teoria da sedução. Ou seja, a teoria da sedução comporta também um aspecto que é uma tentativa de dar conta do recalcamento, uma tentativa de compreender o recalcamento como resultante de um trabalho justamente de tradução das mensagens do outro e de uma tradução que é imperfeita, que deixa restos não traduzidos.

RH - O senhor faz, aqui, referências à carta 52 de Freud?

JL - Sim. Encontramos também outras passagens nas quais ele quase que toca essa idéia, mas Freud ficou prisioneiro da idéia de que as pulsões eram pura e simplesmente biológicas e endígenas. Eu, não nego absolutamente o biológico e o endígeno, mas acredito que o domínio da Psicanálise não é o endígeno. Existe o endígeno, existe o biológico, absolutamente, mas o próprio da Psicanálise, ou seja, a sexualidade e as fantasias, não são endígenos. Não podemos considerar as fantasias como sendo pura e simplesmente endígenas, ao contrário daquilo que pensou Freud num certo momento e ao contrário do que pensou Melanie Klein ou Susan Isaacs. Meu pensamento não é absolutamente antibiológico. Ele dá seu lugar ao biológico e diz que o domínio da Psicanálise - que é o domínio das pulsões sexuais (que chamo pulsões sexuais de vida e de morte) está "fora do biológico". Esse domínio fundamenta-se no domínio biológico, mas está fora do biológico, ele é relacional. E, nesse relacional, coloco o primeiro acento não no vetor que vai de mim para o outro, mas no vetor que vai "do outro para mim".

Vocês me questionaram a respeito do complexo de édipo. Não acredito que deva ser dito que a teoria da sedução substitui o complexo de édipo. Não se deve dizer: antigamente o complexo nuclear era o complexo de édipo, agora é o complexo de sedução. A sedução não é um complexo, ela é uma situação originária, logo ela é uma situação, eu diria, até mais fundamental que a do édipo. Por que? Porque a relação da criança pequena com um adulto poderia existir mesmo, por exemplo, se não houvesse família. Imaginemos, como na ficção científica, que se façam crianças nos tubos de ensaio. Mesmo assim permaneceria uma relaçao adulto-criança, mesmo se não existisse mais família. Essa relação originária é o fato de que uma criança pequena se encontra confrontada a um mundo adulto já evoluído, cultural e sexual. Para mim, trata-se de uma situação mais fundamental.

Quanto ao complexo de édipo - o grande "complexo" - penso que, nessa medida, é preciso considerá-lo como muito importante, mas, apesar de tudo, como algo contingente e "variável". Penso que é necessário, sob esse ponto de vista, reavaliar um pouco o culturalismo e dizer que as formas do complexo de édipo, ou as formas do complexo de castração, ou outras - tudo que pode ter sido inventado - são muito variáveis e que elas não são estruturas fundamentais do inconsciente vindas do biológico. Aliás, não se saberia como o complexo de édipo viria do interior e do biológico. Freud, num determinado momento, acreditou que ele era herdado mas é muito difícil pensar a filogénese do complexo de édipo. Eu acredito que essas grandes teorias que a Psicanálise descobriu não são, falando propriamente, a metapsicologia. A Psicanálise descobriu no ser humano grandes mitos como esses. Não foi ela que os fabricou, ela os encontrou no ser humano. E esses grandes mitos são uma maneira para o ser humano de procurar fazer face justamente ao enigma da mensagem do outro, uma maneira de pôr em ordem esses enigmas. Dito de outra maneira, situo os grandes complexos do lado do processo secundário da simbolização, do organizador, e não do lado do processo primário e do inconsciente. Para mim o complexo de édipo não é o complexo nuclear do inconsciente, ele é uma maneira de organizar o inconsciente. Eu disse uma vez, por brincadeira, que o homem édipo foi o primeiro assassino por "sentimento de culpa", ou seja, ele não tem uma culpa porque matou, mas ele tinha uma culpa ou uma angústia fundamental e matou para dominar essa angústia. Isso seria um pouco no mesmo sentido de Eichhorn quando ele explicou, certa vez, que os jovens podiam cometer crimes por sentimentos de culpa. Penso que édipo realizou o complexo de édipo, não porque era obrigado a isso pelo inconsciente, mas para "dominar" o inconsciente.

RH - Isso pode ser colocado em relação com o fato de édipo haver encontrado a Esfinge antes de Tebas?

JL - Sim, ele encontrou o enigma da Esfinge e o complexo é uma maneira de responder ao enigma. Talvez a Esfinge fosse a figura do outro, a figura anterior ao incesto e ao crime.

Vocês me perguntam igualmente a respeito do "aprés-coup"*, a Nachtráglichkeit. Minha posição é bastante complexa a respeito do "aprés-coup". Tenho um remorso: é um artigo de quarenta páginas sobre a Nachtráglichkeit que está para ser terminado há 3 ou 4 anos...

Existem duas interpretações do Nachtráglichkeit e procuro encontrar uma terceira.

* Traduzido para o português como "a posteriori". Para uma discussão detalhada dessa tradução ver o "Dicionário Comentado do Alemão de Freud", de Luiz Hanns, Editora Imago, 1996.

É preciso dizer que, para Freud, a Nachtráglichkeit tem, fundamentalmente, um efeito determinista, ou seja, alguma coisa foi depositada em algum momento e ela tem seus resultados "aprés-coup". Isso se daria exatamente da mesma maneira como quando alguém coloca uma bomba com controle remoto num avião e a bomba explode "aprés-coup". Não há mistério: o tempo se desenvolve desde o momento em que se põe a bomba até a explosão.

A flecha do tempo é, então, retilínea.

Pode-se compreender o "aprés-coup" de outra maneira: ao ver uma casa que cai, eu digo, "aprés-coup": "ela estava mal construída". Ou seja, eu volto atrás e, dessa vez, interpreto a flecha do tempo ao contrário. Nas perguntas, vocês dizem que são os franceses que têm esse ponto de vista. Não são somente os franceses.

Vocês têm aí todos os adeptos da hermenáutica psicanalática atualmente dizendo que o sentido do acontecimento não vem da infância, mas que somos "nós" que reprojetamos para três nossa interpretação a respeito.

Pensemos, aqui, nas idéias de Schafer ou de Spence a esse respeito, ou nas idéias de Thomá e Kaechele: todas essas pessoas interpretam a Nachtráglichkeit no sentido de uma hermenêutica, ou seja, pouco importa aquilo que se passou na infância, nós, adultos, reinterpretamos aquilo que aconteceu, nós fazemos uma história do passado como o queremos.

RH - Mas, nesse momento, estaríamos muito próximos de Jung...

JL - Sim, isso mesmo. É a Zur?ckfantasieren (fantasiar retroativamente: do presente em direção ao passado).

Para mim o essencial da hermenêutica diz respeito ao Zur?ckfantasieren, que, acredito, não é mais válida do que a outra direção, ou seja, a do determinismo do passado em direção ao presente. Então, o que fazer?

Na verdade, acredito que existe alguma coisa que está no começo, mas que não está completamente determinada, porque é uma mensagem e, mais especificamente, uma mensagem enigmática. Assim, o que está no início não é uma causa, mas é alguma coisa que é dada como sentido, mas como sentido que é necessário interpretar e traduzir. Eu tomo o exemplo que dê Freud na Traumdeutung (A Interpretação dos Sonhos) sobre a Nachtráglickeit no qual ele conta a seguinte história: um jovem - grande apreciador das mulheres - encontra, certa vez, uma linda mãe que dá o seio ao seu bebê, e esse jovem diz: "que pena que eu não soube isso quando era pequeno", Freud dá esse exemplo para explicar a Nachtráglickeit. Esse exemplo pode ser compreendido no sentido da hermenêutica, ou seja, tudo vem do adulto. Jung vai dizer, ou a hermenêutica vai dizer: a relação da criança com o seio é puramente inocente e é o adulto que projeta para trás seus desejos. Ou então, inversamente, Freud vai dizer: a criança já é sexual e tornou-se sexual no adulto, mas tudo vem da criança. Eu digo simplesmente que Freud, no seu exemplo, esqueceu alguma coisa: a mãe que amamenta. Ele esqueceu-se de que há um outro personagem na cena: é aquela que amamenta e que ela é sexual quando dá o seio à criança.

RH - ... e envia mensagens enigmáticas...

JL - Isso mesmo. Veja então: a Nachtráglickeit não está nem inteiramente na direção passado-presente, nem inteiramente na direção presente-passado, embora aquilo que seja dado já esteja dado, mas dado numa mensagem e não num determinismo biológico puro e simples. Quanto à bomba que explode, para retomar o exemplo do avião, não estamos completamente seguros: a bomba que explode é enigmá-tica!

RH - Nós teremos simplesmente "versães" a respeito de tudo isso...

JL - Sim, temos diferentes traduções, mas, apesar disso, a mensagem está lá de qualquer maneira: não podemos negar que houve, na partida, uma mensagem sexual.

RH - ... que nos faz pensar sem parar...

JL - ... é isso, é ela que nos faz pensar.

Agora falemos a respeito do Congresso da IPA em Barcelona. Eu tenho muitas coisas a dizer a respeito da sexualidade e é típico da instituição internacional que não me tenham pedido um relatório sobre isso. Mas é assim, a instituição é dessa forma: é uma burocracia que decide e isso é típico da burocracia internacional. O que se pode fazer?

Quanto a mim, eu também não esperei André Green para dizer que, na verdade, a Psicanálise fala sempre e tão somente do sexual, e isso porque acredito que mesmo a pulsão de morte é uma pulsão sexual. E eu insisto: a Psicanálise fala tão somente do sexual. O domínio da Psicanálise é o domínio do sexual, não somente o sexual biológico (que existe), mas o sexual fantasmático. Pergunto-me, então, se esse Congresso - tão clássico - conseguirá dizer coisas psicanalíticas, visto que o movimento psicanalítico atual é um movimento de dessexualização. Não estou seguro de que um congresso será suficiente para recolocar a sexualidade na sua devida posição.

Vocês perguntam também a respeito de minha opinião sobre a teoria e a metapsicologia.

Vocês sabem que eu sou completamente a favor da metapsicologia. Eu acredito que a metapsicologia é um pensamento rigoroso e não um pensamento mítico como Freud algumas vezes sugeria. Essa idéia da "bruxa" metapsicológica é um pouco perigosa, porque pode levar a pensar que a metapsicologia é a respeito de fantasias. Para mim, o domínio próprio da metapsicologia e o ponto de partida não é a "clínica", mas é a prática.

Para mim a grande invenção de Freud é a prática e não a clínica. Eu faço uma grande diferença entre as duas. A clínica é a descrição dos mecanismos psíquicos (as neuroses, as psicoses, etc.) e , para mim, a invenção genial de Freud é a prática. Ela é genial, porque está numa espécie de comunicação interna com a situação originária do ser humano. Ele inventou, com a situação analítica, uma situação que se encontra em ressonância com a situação originária do pequeno ser humano. Ele renovou, então, alguma coisa da situação de sedução originária na prática psicanalítica. Para mim, a finalidade da metapsicologia - e isso é o que me levou a ela - é a de dar conta da eficácia extraordinária dessa prática psicanalítica. E por quê? Porque a prática psicanalítica consegue mudar coisas - dificilmente - mas mudar coisas que existem depois dos primeiros anos e vida. E, se podemos mudar, é porque essa situação tocou em alguma coisa que está em relação com a sedção originária.

RH - Ou seja, a prática psicanalítica recoloca a situação originária e cria uma nova oportunidade.

JL - Ela reitera, de uma outra maneira evidentemente, mas ela reitera a relação no que se refere ao enigma.

RH - Sempre me pareceu curioso que Freud empregue a figura da bruxa no momento em que se refere à metapsicologia.

JL - Eu penso que é um pouco uma imagem de Jung. Nos seus discípulos, não em Ferenczi, mas em Lou Andreas Salomão, há expressões como "a bruxa metapsicológica", "a metapsicologia é nossa mitologia". Não concordo absolutamente com isso. Penso que isso vem do fato de que, no pensamento psicanalítico, não se soube distinguir bem dois aspectos: os mitos, efetivamente descobertos pela Psicanálise no ser humano - a respeito dos quais eu falava há pouco, mas que não são a teoria psicanalítica - e, por outro lado, a teoria da relação originária ou seja, essencialmente, a teoria do recalcamento e da constituição do aparelho psíquico. Essa segunda parte é, na minha opinião, uma parte que deve ser rigorosa no sentido de que não é científica como a matemática, mas que pode ser discutida e que podemos procurar modelos cada vez melhor adaptados para essa metapsicologia.

Eu, pessoalmente, procurei trazer um modelo do tipo não diria linguístico no sentido de Lacan, mas um modelo moldado na linguagem e que eu chamo de "modelo tradutivo". O modelo da tradução é, aqui, um modelo mais amplo que o modelo linguístico, na medida em que existem igualmente traduções nas linguagens que não são organizadas, ou seja, pode-se traduzir uma mensagem não-verbal. Repetindo, essa noção é mais ampla que a noção linguística porque existem traduções de mensagens que não se baseiam nessa linguagem : os gestos, a mímica, a música. E, para a criança, há um mundo de linguagem que ela deve traduzir antes de ter acesso à linguagem organizada.

A respeito de Donald Meltzer, devo dizer que não o conheço. De acordo com a pergunta, ele diz "este conflito surge pela admiração do exterior do objeto, etc". Pergunto-me se não ficamos aí, ainda, numa concepção que eu chamaria de ptolomaica, ainda não copernicana.

Existe uma noção na qual estou trabalhando neste momento: é a noção de sublimação. A noção de sublimação, assim como está, constitui-se num impasse para a Psicanálise.

RH - O senhor escreveu um livro sobre a sublimação...

JL - Fiz um livro que mostra que a sublimação é um impasse, mas agora procuro ir além do impasse e penso: por que a sublimação seria um impasse? É porque, uma vez mais, ela procura explicar tudo a partir de pulsões internas. E É preciso tentar pensar a sublimação igualmente a partir do outro, ou seja, da estimulação do outro.

RH - ...dentro da teoria da sedução generalizada ?

JL - Sim, é isso mesmo. Penso, aqui, numa noção como a de "inspiração", que foi uma noção dos románticos alemães, embora eles não a tenham elaborado. Acho muito interessante colocar em foco a noção de inspiração, porque nela, uma vez mais, o que está em jogo é o vetor que "vem do outro" e não o vetor que "vem de mim". "Eu sublimo", mas eu "sou inspirado", ou seja, o vetor da inspiração vem do outro. Evidentemente é necessário desembaraçar essa noção de todo aspecto mítico; não se trata de fazer misticismo, mas é preciso voltar à idéia de que o próprio da criatividade é estar aberto à mensagem do outro e não somente refabricar as coisas a partir das suas pulsões puramente internas.

RH - Teria alguma coisa com a idéa de "musa"?

JL - Sim, algo assim, mas, evidentemente, sem misticismo. Se bem que um pouco de misticismo não é assim tão mau... Só um pequenino grão...

Eu vejo os artistas, por exemplo, alguém como Giacometti: para mim ele é o exemplo próprio de alguma coisa que ultrapassa a idéia de sublimação. Ele busca alguma coisa, mas é alguma coisa que, na sua partida, é uma estimulação que lhe veio do outro.

RH - Então teremos o prazer de poder lê-lo a esse respeito.

JL - Em 1987 irei a Montevideo e seguramente a Buenos Aires, mas não acredito que possa, então, ir a Porto Alegre. Talvez em 1998. É preciso que eu veja isso. Mas não é impossível.

RH - Seria uma grande honra poder recebê-lo em Porto Alegre em 1998. Estudamos seu pensamento e procuramos compreendê-lo, mas gostar?amos de poder igualmente contar com a sua presença, visto que o senhor é uma fonte de inspiração para todos nós.

JL - Ir a Porto Alegre trar-me-á um grande prazer.

RH - Muito obrigado. Eu gostaria de, mais uma vez, lhe agradecer, em nome da nossa Revista de Psicanálise e da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

JL - Muito bem. Agora vamos conhecer a tina da bruxa. (Risos).

Transcrição e tradução de Maria Carolina dos Santos Rocha
Revisão técnica de Raul Hartke

Revista de Psicanálise - SPPA

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Mery Wolff - Membro Efetivo da SPPA

Acabamos de assistir a mais um dos belíssimos filmes de Almodóvar.
O filme todo transita entre o real e o fantasmático, entre a sanidade mental e a doença, fazendo uma referência importante de que o limiar entre estes dois mundos é muito tênue e que podemos muito facilmente estar num ou noutro pólo.
Como os demais filmes deste diretor, é uma obra sensível, cheia de simbolismos e que retrata a alma feminina com maestria.
Já no início, o forte vento que traz as folhas de volta aos túmulos nos reporta ao nome do filme .... Volver ... voltam as folhas, voltam as lembranças dos entes queridos que se foram e também voltam os fantasmas de relações insatisfatórias não elaboradas.
E Almodóvar segue anunciando nas entrelinhas o drama em que vivem estas mulheres.
Três gerações que vivem conflitos muito intensos. Estes, ao não serem elaborados, persistem como fantasmas assombrando suas vidas.
Almodóvar costuma abordar em seus filmes com muita propriedade os conflitos entre mães e filhas. Este tema é muito familiar em psicanálise. Busca de identificação da menina para com a mãe entremeada pelos conflitos edípicos e colorida por sentimentos primitivos de inveja constituem-se num caldo de cultura que favorece o surgimento de dificuldades para a constituição da feminilidade bem como para o estabelecimento de uma relação afetiva menos comprometida por conflitos.
Os sentimentos que povoam o universo feminino são muito bem abordados neste filme e em seu decorrer Almodóvar vai construindo a trama que parte destas relações precoces comprometidas:
- as dificuldades na relação de Raimunda com a mãe; a não percepção pela mãe de Raimunda do assédio sexual do pai que culmina com uma gravidez. Esta situação provavelmente gerava na então menina intensos sentimentos de desamparo e ódio em relação à mãe , incapaz de protegê-la dos ataques do pai e de seus próprios sentimentos edípicos. Infelizmente esta situação é bastante presente em nosso dia-a-dia e demanda um trabalho profundo.
- como conseqüência desta relação Raimunda se afasta da mãe e busca a tia como objeto continente
- relação intensa entre a irmã de Raimunda com a mãe que, provavelmente, excluem-na.
Estas vivências infantis traumáticas permanecem fazendo parte do imaginário inconsciente destas mulheres na espera de elaboração.
Raimunda, ao engravidar, se afasta da família indo para Madrid e encontra um parceiro que assume seu filho.
Mas os traumas não elaborados se tornam fantasmas que esperam poder retornar, assim como a mãe de Raimunda vivendo nas sombras após sua pretensa morte cuidando da irmã, da alimentação de suas filhas e de si mesma, na espera de poder voltar – Volver.
O mesmo drama que povoava o inconsciente de Raimunda reaparece no assédio de Paco para com Paula. Esta, talvez por possuir uma relação com a própria mãe um pouco mais bem elaborada, é capaz de dar um outro destino em sua vida. Um destino pesado mas que encontra suporte na mãe, algo que a própria Raimunda não encontrou.
Ao ajudar a filha apoiando-a e tentando dar um destino menos perturbador ao marido morto Raimunda vai elaborando seus próprios fantasmas. Esta elaboração gradativa aparece na construção que Almodóvar vai fazendo no filme pela possibilidade do reaparecimento da mãe, primeiro para Sole depois para Paula e por último para Raimunda.
A busca de trabalho que Raimunda faz alude ao contato com o real, fundamental para a manutenção da saúde mental e, ao mesmo tempo, mais uma vez leva-a a VOLVER ao passado através da música, mais um momento em que Almodóvar assinala uma possibilidade de reelaboração dos vínculos primitivos mãe-filha.
Após este reencontro Raimunda resiste a aceitar a mãe. E aí novamente o bom vínculo de Paula com Raimunda é capaz de promover este reencontro.
O retorno das mulheres para sua cidade natal, passando pelo local em que Raimunda enterrou Paco, mostra como esta elaborou internamente de uma forma afetiva, positiva e respeitadora esta relação conturbada levando-o de volta para um local apreciado pelo ex-marido. É assim que Almodóvar entende que se elaboram os dramas humanos.
Nesta volta as duas mulheres retomam seus fantasmas do passado: o assédio do pai para com Raimunda, a incapacidade de a mãe perceber, a gravidez de Raimunda, a fuga dela da vila e os conseqüentes sentimentos de mágoa, raiva e tristeza que assombravam o mundo interno destas mulheres.
Em várias cenas no decorrer do filme Almodóvar foca a câmara nos corpo de Raimunda, mais detidamente nos seios, assinalando os aspectos sedutores da personagem. Mais para o final, numa conversa a mãe pergunta à Raimunda se sempre teve estes seios. Neste momento confirma-se mais uma vez o que assinalei anteriormente: os sentimentos que transitam na relação mãe-filha e que podem interferir no estabelecimento de um vínculo satisfatório. O corpo feminino como objeto de desejo e, ao mesmo tempo, de comércio também é assinalado na personagem da vizinha prostituta.
Nesta oportunidade Almodóvar expõe mais claramente os meandros desta relação tão conflituada entre Raimunda e sua mãe e que foi sendo pontuada nas entrelinhas durante o filme: o assinalamento de que os olhos de Paula lembram o olhos do avô é um exemplo disso.
Poder colocá-los em cena, falar sobre eles é o caminho para torná-los menos atemorizadores, enfim, para elaborá-los.
Para encerrar quero ressaltar duas questões que me parecem as mais importantes deste filme. Em primeiro a questão da transgeracionalidade e a importância de dar acesso aos fantasmas do passado como o único meio de elaborar estes sentimentos tão penosos que interferem na vida das pessoas ao povoarem o inconsciente e só aparecer “na calada da noite” assombrando o nosso psiquismo. A outra questão que também me parece que foi abordada de uma forma muito sensível por Almodóvar é a questão do abuso sexual doméstico. Vemos no filme como, ao ficar escondido, ele tendeu a repetir-se numa outra geração. E aí o autor aborda um tema muito relevante e que merece um cuidado especial por parte da sociedade.
O abuso sexual doméstico é mais comum do que imaginamos. E só poderemos abordá-lo se não permitirmos que fique escondido como um fantasma à espreita de voltar. Para isso temos que poder encará-lo; com respeito, com cuidado, com afeto....., como vimos no final do filme.
Este filme, pela riqueza simbólica, pela beleza de imagens e pela temática instigante, nos permitiria ficar horas e horas conversando e ainda assim talvez não abarcássemos toda sua complexidade. Espero ter tocado em alguns pontos que permita-nos seguir debatendo mais um pouco.


* Filme de Almodóvar, apresentado na Casa de Cultura Mário Quintana, em 13 de julho de 2007


O Jardineiro Fiel




por: Roberto Gomes - Membro Efetivo da SPPA

Introdução
Fernando Meirelles (Cidade de Deus) e John Le Carré (após Single and Single, sobre a máfia dos vampiros) protagonizam esta novela de mistério na África neocolonial.
O governo do Quênia e o Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra estão envolvidos com a indústria farmacêutica Three Bees (Três Abelhas) na aplicação de testes clínicos de uma nova droga para tuberculose - DyPraxa - na população pobre de Nairóbi. A droga apresenta como um de seus efeitos colaterais a lenta e dolorosa morte por falência múltipla de órgãos. O filme, logo no início, contrasta as diferenças sociais entre quenianos e britânicos.
A ação de The Constant Gardener inicia numa Faculdade de Direito em Londres, onde Tessa (estudante, órfã, 24 anos, filha de uma condessa italiana médica e de um advogado juiz) confronta Justin (44 anos, diplomata, filho de uma tradicional e aristocrática família inglesa de médicos e pesquisadores em botânica).
Ela o questiona sobre o papel do governo inglês na guerra do Iraque. No livro que deu origem ao filme, Tessa questiona-o sobre as funções de um Estado.
Justin se apaixona por ela, eles se casam e vão para o Quênia. A morte de Tessa desencadeia uma investigação vertiginosa sobre as operações da Três Abelhas e sobre funcionários quenianos corruptos, os quais, apesar de conhecerem os riscos letais da droga, não hesitam em forrar seus bolsos com propinas para fazer vistas grossas ao mal que patrocinam.
Mulheres negras com o logo das três abelhas distribuem e propagandeiam as drogas, ao mesmo tempo que exigem assinatura às cegas de termos de consentimento que funcionam como uma verdadeira licença para matar.
A morte misteriosa de uma jovem negra motiva Tessa e o Dr. Arnold Bluhm, médico negro da Bélgica, a investigar a ThreeBees recorrendo a ONGs da Alemanha e da Suécia para obter informações, numa verdadeira rede de amizade.
Justin mantém-se alheio, cego às atividades de Tessa. Prefere as intrigas relacionadas à cúpula das relações diplomáticas entre britânicos e quenianos – a lista da vergonha e da corrupção - e dedica-se ao seu hobby de jardinagem. É obrigado a olhar melhor para a situação quando recebe a ordem de colocar Tessa no seu devido lugar. O idealismo cega a Tessa; o ciúme, a Justin.
Após a morte de Tessa, Justin não dá crédito aos boatos e informações caluniosas sobre ela e o Dr. Bluhm – mas não mais se recusa a olhar para a realidade – e inicia a investigação sobre as atividades da esposa, procurando entender melhor sua motivação, dando-lhe crédito, e descobrindo quem ordenara sua morte, sem importar-se com as conseqüências.
Segundo o próprio Le Carré, a missão dela tornou-se a sua missão, numa ação incorporativa da esposa morta, com quem passa a dialogar e a tecer recordações ao longo de sua nova trajetória. Esse diálogo interior parece ter sido a garantia de sua sobrevivência psíquica.
Vou desenvolver uma linha de raciocínio que busca ancorar-se em dois conceitos da psicologia profunda – designados aqui como fazer vistas grossas e ritos de sacrifício - e argumentar em torno dos fatos da trama, para relacionar esses aspectos psicológicos com suas possíveis influências na política.
Vistas grossas
Podemos pensar que Justin realmente não sabia, era inocente quanto à natureza dos atos e argumentos de Tessa: que o lucro das corporações e do capital ocidental é que arruínam o meio ambiente e colocam em risco vidas de pessoas.
Como alternativa, poderíamos também pensar que Justin sabia e fazia que não sabia. Colaboram para isso o oportunismo e o conluio dos demais personagens (sobre a dura realidade dos fatos, a incomodação de saber, o custo da caça aos bandidos, a dificuldade de resistir às tentações do dinheiro e da fama fácil). Vemos aí a tendência a evadir-se da realidade, a tentativa de fazer vistas grossas a tudo o que havia ocorrido.
Fazer vistas grossas para a realidade é uma maneira que encontramos para nos protegermos dos horrores do cotidiano. Esse pode ser o mecanismo dominante na negação das conseqüências da destruição do meio ambiente, da pobreza e do atraso, do terrorismo, da corrupção, da proliferação de armas nucleares e, no caso em foco, das pesquisas impiedosas e inconseqüentes com seres humanos.
O refúgio da verdade na onipotência – eu tenho a versão verdadeira - torna-se mais evidente em tempos de crise, como guerras, revoluções, grandes instabilidades político-econômicas, e predispõe a aceitar e louvar heróis e gurus, salvadores e místicos ilusionistas. Incluam-se aí a medicina e a opinião médica, que são insidiosa e metodicamente corrompidas pelas gigantes farmacêuticas e suas drogas miraculosas. Ressalte-se, no entanto, que essas condições coexistem ao lado de médicos e empresas farmacêuticas responsáveis; e médicos altamente qualificados que sofrem perseguições por discordarem de seus patrocinadores.
Ritos de Sacrifício
O ponto nodal de convergência do filme são as margens do lago Turkana. O lago é um dos mais ricos sítios de pesquisa das origens da humanidade, atestado pela riqueza das descobertas das expedições arqueológicas da Fundação Leakey.
Ali morre Tessa no início do filme; e ali morre Justin no fim. Solitários e distantes da civilização. Queimando e dissolvendo-se sob o abrasante sol africano. Vítimas imoladas para aplacar a ira dos novos deuses do Olimpo.
Inverte-se o contraste social do início do filme: neste local, a beleza do cenário africano, a cor vívida e pulsante da natureza afro-queniana contrasta com o preto carbonizado e putrefato dos corpos britânicos.
O mais primitivo e o mais desenvolvido tornam a se encontrar, numa luta que parece eterna e interminável. O mais sublime e o mais sórdido e bárbaro continuam sócios, acompanhando o desenvolvimento do homem.
Justin intui sua morte iminente. Despoja-se da arma, descarrega-a e prepara-se para a imolação, para o sacrifício. Ato premeditado que prepara o desfecho final em ação de corpo presente numa igreja de Londres. Novamente o contraste: o santuário primitivo, a natureza, o altar dos primeiros sacrifícios; e o ofício sagrado no interior dos templos, para onde se transportou o altar sacrificial. É onde caem as máscaras, não por acaso, um dos símbolos mais significativos da cultura africana. A imolação de Justin, ou seu sacrifício, contém uma vingança contra os deuses como o herói que não teme desafiar seus poderes.
O altar da natureza como palco de um sacrifício, com todos os seus componentes primitivos atualizados em uma auto-imolação em câmara ardente?
Foi a partir dessas observações que redirecionei meu pensamento para o estudo dos atos e ritos de sacrifício.
O termo sacrifício deriva do latim sacrificium, que tem o sentido de oferenda sagrada. É um ritual no qual uma vítima é sacrificada para criar relações favoráveis entre os homens e os deuses, ou, como nesse caso, entre homens e homens. O desejo de quem sacrifica a vítima é, também, o de incorporar e apropriar-se dos atributos e qualidades desta.
Com a evolução, a vítima humana passa a ser substituída por oferendas de animais e coisas, efetuadas num altar. Posteriormente, trabalhos a serviço de Deus substituem as oferendas nos templos. Servir a Deus torna-se uma forma de sacrifício. O fogo e a fumaça são componentes importantes do ritual.
Assim como o Pentateuco prescreve as condições para a celebração do sacrifício, também o mais antigo poema conhecido, a história de Gilgames (o grande homem que não queria morrer) e Enkidu (eleito para morrer em seu lugar), escrito na Babilônia – atual Iraque - há mais de 35 séculos, alude a um rito sacrificial.
Essas alusões a oferendas, ao fogo ou a fumaça em celebrações (incenso) persistem até hoje em gestos e atos da vida cotidiana como expressão derivada de fantasias sacrificiais. O sincretismo religioso presente em ritos afro-brasileiros ilustram bem muitas dessas situações.
Mas e o oferecer-se espontaneamente como vítima?
O rito de caçar e matar a vítima - caso da Tessa - ou o rito de imolar-se espontaneamente como vítima do sacrifício - caso do Justin - podem ser concebidos e interpretados como uma manobra política e de interesses em sua origem.
Mas também poderíamos ver no sacrifício de Justin oferecendo-se como vítima o desejo de vivificar e aplacar a imagem de Tessa, e assim proteger-se de sua acusação por sua negligência com ela. Ao mesmo tempo, Justin trama a vingança para reparar sua omissão, e, assim, restabelecer relações amigáveis com ela.
Este sacrifício é carregado de sentimentos múltiplos e contraditórios em relação à mulher que foi concomitantemente amada e negligenciada, protegida e vítima de seu ressentimento. Pressionado pela culpa, Justin desloca sua força destrutiva reprimida – era um tímido introvertido – na direção de uma denúncia pública contra os detratores de Tessa..
Talvez possamos pensar que seu sacrifício contenha também, num segundo aspecto, a fantasia ou desejo de que algum princípio vital, de que uma energia nova emanasse deste ato, restaurando/salvando vidas às custas dessa renúncia mortal. Poderíamos inferir algo de culpa mais madura predominando? Um sacrifício com finalidades políticas?
Ou, acrescentaria no caso em estudo, uma vingança consciente e reparadora engendrada como única saída, diante da consciência da falência do Estado para desmascarar os fatos. Um sacrifício propicia e excita os afetos ambivalentes deste protetor que falhou em sua promessa de proteger a esposa e o filho quando Tessa estava grávida.
Ao perceber como falhou, pode-se conceber a culpa e o penar de Justin em relação a Tessa. Assim, seu sacrifício contém não só aspectos destrutivos e reparadores em relação à esposa e seus detratores, mas também uma expiação masoquista contra si mesmo.
Na expiação masoquista, teríamos uma possibilidade de explicação da força interna motivadora para o auto-sacrifício e, quiçá, uma justificativa para sua utilização como arma de transformação da realidade dos fatos na política. O que nos aproximaria de atitudes contemporâneas que ilustram estas tendências nas mais diversas formas de ação.
Há autores que preconizam a manifestação de derivados desses ritos sacrificiais primitivos deslocados e disfarçados em ideologias políticas mascaradas que utilizam o eufemismo (dar voltas e ou evitar diretamente assuntos desprazerosos) e o tecnicismo (idealização dos avanços tecnológicos, banalizando e tornando comuns certos procedimentos alegando algum grau de sacrifício necessário) para manipular as massas.
Na seqüência final da cerimônia fúnebre na igreja, diante de Deus e em busca da justiça, Justin, de corpo presente, parece incorporar a vitalidade de Tessa ausente ou inibida nele mesmo. No altar oficial de celebração dos sacrifícios argumenta-se e denuncia-se num tribunal improvisado.
No final do filme, três colunas de mulheres emergem da margem do bosque. As imagem imponentes das negras sudanesas, altivas em seus 1,80 m, com o majestoso andar africano, - sonho impossível de toda passarela de moda,- sugerem a falência de uma política em que os homens fazem a guerra, e as mulheres fazem as casas.
Essa imagem contém uma verdade psicológica alicerçada às bases do psiquismo, e tem importante repercussão social e política: a construção da força de Eros para neutralizar Tanatos através dos cuidados maternos na origem da vida.
O empenho e dedicação ao bem-estar de nossos sucessores é o que nos torna realmente ricos e bem sucedidos. Proteger essa relação é também uma das funções do Estado e das ações destinadas a promover a saúde mental. Ao final, esta é a essência de um drama entre a consciência individual e as cobiças corporativas. Um drama em torno do qual, nesta sala de cinema, aqueles que estão em busca de respostas para os grandes enigmas da vida puderam sentar-se e buscar um refúgio temporário.


Bibliografia Consultada
Andresen, J. J. (1984). The Motif of Sacrifice and the Sacrifice Complex. Contemp. Psychoanal., 20:526-559
Bunker, H. A., Jr. (1933). The Meaning of Sacrifice. Psychoanal Q., 2:154-157
Freud, S. (1913). Totem e Taboo. S. E., 13.
Meissner, W. W. (1996). In The Shadow Of Moloch: The Sacrifice Of Children And Its Impact On Western Religions. J. Amer. Psychoanal. Assn., 44:293-297
Spiegel, R. (1997). From Myth to Psychoanalysis. The Epic of Gilgamesh. Contemporary Psychoanalysis 33: 189-209
Steiner, J. (1990). The Retreat from Truth to Omnipotence in Sophocles' Oedipus at Colonus. International Review of Psychoanalysis 17: 227-237
Whitehead, C. C. (1987). On Prometheus. Int. R. Psycho-Anal., 14:527-540.


*The constant gardener, de Fernando Meirelles, roteiro: Jeffrey Caine, atores: Ralph Fiennes, Rachel Weiz, fotografia: Cesar Charlone, música: Alberto Iglesias