O fim do tempo, espaço e corpo orgânico no sujeito recriado.
Autores:
João Luiz VIEIRA, PhD (New York University)
Universidade Federal Fluminense – Departamento de Cinema e Vídeo
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Luiz Antonio L. COELHO, PhD (New York University)
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Departamento de Artes
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David Cronenberg é um autor visionário, enigmático e dono de marcante coerência temático-narrativa.[1] Em eXistenZ (1999), como em filmes anteriores, o diretor canadense trata dos pesadelos da alma e do imaginário sobre o futuro humano, quase sempre perturbador. Mesmo em filmes que parecem compor um panorama à parte, como M. Butterfly (1993) ou Mistérios e paixões (Naked Lunch, 1992) alucinações e questões de conflitos de identidade e individualidade são uma constante. Mais recentemente, contudo, e falando da coerência mencionada, o conjunto de seus filmes têm apontado para questões que dizem respeito à posição do sujeito na era eletrônica, como a interface da tecnologia com o ser humano ou as “novas” formas ontológicas que se apresentam ao indivíduo através da tecnologia, redefinindo uma outra “realidade” repleta de seres e paisagens virtuais. Nesse contexto, algumas perguntas óbvias que surgem são: o que passa a significar “existir” no mundo a que estávamos habituados? E em que “mundo” passamos a “existir?”
Pode-se dizer, que eXistenZ é descendente direto de Videodrome (1983) tanto na temática quanto em sua dimensão textual. Ambos, dirigidos e roteirizados por Cronenberg, são repletos de diferentes níveis de referências, loops narrativos, percepções, e estados, alterados e “realidades” dentro de “realidades.”[2] A questão central nesses dois filmes parece tratar do que o pesquisador Scott Bukatman chama de identidade terminal: uma ansiedade contemporânea que provém de uma possibilidade palpável do fim do sujeito e o surgimento de uma nova individualidade construída na tela do computador, da televisão ou do videogame (BUKATMAN, 1994).
Videodrome e eXistenZ são filmes que se alinham à já tradição crítica de uma realidade gerada pela tecnologia a partir do pós-guerra e representada por autores como Lewis Mumford (1963, 1970), Hans Magnus Enzensberger (1992), Joshua Meyrowitz (1985), Jean Baudrillard (1983 e 1988), Donna Haraway (1989), Theodore Roszak (1992), Régis Debray (1994) ou Stephanie Mills (1997). Particularmente em relação ao cinema, os filmes em questão realçam as transformações geradas a partir de nossa relação com a biotecnologia e a partir do discurso da mídia contemporânea. Referem-se a um apagamento de fronteiras de gênero e de suportes tecnológicos de informação, ou entre cultura de elite e cultura popular; entre o real e o imaginário e, principalmente, entre formas hegemônicas e experimentais de representação audiovisual. Na era dos seres de proveta, cyborgs, clones, pele artificial, proteína animal aplicada em chips e da realidade virtual, o cinema de Cronenberg dramatiza uma espécie de espaço de acomodação para uma nova existência tecnológica. Através de habilidosa combinação de linguagem, iconografia e narração, o choque do novo é simultaneamente estetizado e investigado. O espectador desse jogo acaba habitando—e se habituando com—um mundo repleto de alterações cognitivas e figurações poéticas, que refletem suas próprias configurações sociais, tais como estão sendo construídas e modificadas pela tecnologia de engenharia genética de ponta.
Além dos dois filmes mencionados, produções anteriores como A mosca (The Fly, 1985), Scanners - sua mente pode destruir (Scanners, 1981) ou Gêmeos, mórbida semelhança (Dead Ringers, 1988) já enfocavam a crise da coerência humana, a alteração de identidade em conseqüência da vida contemporânea e da introdução das novas tecnologias. O espaço narrativo nos filmes de Cronenberg produz uma complexa função metafórica na medida em que a expressão—ou o desejo—do corpo são espacializados e interpelados pelas forças do espetáculo num jogo dialético de prazer e repulsa e numa tendência quase que obsessiva em querer ver e mostrar aberrações, anomalias, cortes, feridas, reentrâncias e vísceras. No texto cronenberguiano a ênfase está na figuração do corpo como local de conflito psico-sexual, social e político.
Estamos diante de filmes em que não mais se dramatiza a dualidade corpo e mente e sim uma realidade tricotômica de corpo, mente e máquina. O corpo é tão vulnerável que é facilmente absorvido e controlado pela tecnologia, tornando-se flexibilizado em sua matéria e tornado mero invólucro de uma subjetividade que não mais lhe pertence enquanto indivíduo. Esta lhe é introduzida pela tecnologia como o espírito em controle do corpo do médium na possessão espiritual.
Para Cronenberg, a tecnologia pode gerar possibilidades que oscilam entre o grotesco e o irônico na relação do corpo com o objeto inorgânico. Algo muito diferente do cyborg a que nos acostumamos, que se faz à imagem do ser humano e tenta reproduzir as formas originais ditadas pela Natureza. Em Videodrome ou eXistenZ, corpo e objeto fundem-se de maneira estranha, às vezes repulsiva, desconsiderando a busca da cópia do modelo natural. Aqui, o diretor parece parodiar seu conterrâneo e conhecido estudioso da comunicação, Marshall McLuhan (1994), na literalização do objeto como extensão orgânica ou na prerrogativa do meio em tornar-se o próprio significado e, como tal, a significação do sistema. Processos biológicos e mentais ganham, simultaneamente, dimensão espaço-temporal. A topografia da mente ganha uma espacialização literal.
eXistenZ radicaliza o que Videodrome já apresentava, ou seja, a redução da experiência humana a uma espécie de simbiose com a mídia. Em sua alucinação, a personagem Max Renn, interpretada por James Woods (Videodrome), se vê como o próprio aparelho de vídeo (a cassete chega a sair de seu estômago). Nesse filme há, ainda, a imagem de uma enorme boca em close-up que parece querer sair da tela e literalmente engolir a personagem. O aparelho ganha, ainda, materialidade e textura carnais, com veias e movimentos peristálticos. Trata-se de uma relação que insere e integra as tecnologias eletrônicas de forma mais imediata e ambígua, e certamente muito menos confiável do que se tinha antes (no cinema, na televisão), quando havia mesmo uma separação física entre ser e meio. Ainda em Videodrome, Max Renn usa um revólver que vem a ser uma extensão do corpo, integrado em carne e osso ao braço. Já em eXistenZ, os revólveres, apesar de objetos exteriores ao corpo, são construídos a partir de material completamente orgânico (as balas são feitas de dentes humanos), obtido em “fazendas” criadas para esse fim, como um órgão de cyborg mais “avançado.”[3]
eXistenZ compõe, ainda, um quadro de auto-referencialidade que, de certa forma, reproduz o mesmo estado de fruição a que está imerso o espectador do filme, em situação de imobilidade, relaxamento e passividade que disparam o processo de produção de narrativas imaginárias. Esse estado de torpor, a meio termo entre vigília e sono, caracteriza a “situação-cinema” conforme descrita por Christian Metz (1980). Tanto a situação fílmica a que somos submetidos enquanto espectadores do filme quanto a diegese textual a que assistimos criam a matéria para as “alucinações” que construímos. A própria noção de virtual introduzida por Susanne Langer (1953), na fruição artística, pressupõe o jogo da criação tendo por base estímulos gerados pela obra de arte. No caso do filme narrativo de ficção, ao entrarmos no cinema já nos condicionamos a esse jogo alucinatório.
Na relação entre Videodrome e eXistenZ, Chris Rodley (1999), fala que enquanto o primeiro enfoca a natureza da invasão do espectador passivo perpetrada pelo próprio cinema, o segundo trata da invasão do cinema pelo espectador interativo. Essa interatividade configura-se a partir da necessidade de produção de sentido. O receptor tenta criar uma narrativa possível e “joga” com possibilidades. Em eXistenZ, em particular, onde o tema é um jogo virtual, ele é colocado em uma situação vicária em relação às personagens que constituem as platéias dentro do filme, que ora são jogadores desse jogo, ora tentam certificar-se se o que está ocorrendo é realidade ou ainda o jogo. A pergunta que gravita em todo o filme é “estamos diante da realidade ou o que vivemos faz parte do jogo?” Para BURDEAU (1999), é o cinema, por sua própria natureza, que mais promove o apagamento das diferenças entre os mundos real e virtual de eXistenZ ao colocá-los no mesmo nível. Ao mesmo tempo em que registra, representa as duas dimensões da mesma maneira.
A busca pelo sentido existe em qualquer interação do ser humano com o mundo “real” ou simbólico. Não há novidade nisso. A novidade em Cronenberg está em chamar atenção para um processo nem sempre fácil de se perceber, pela própria banalidade, e ele o faz ao integrar esse processo de decodificação ao tema do filme. A natureza lúdica de eXistenZ também cria no espectador uma vontade de rever o filme, de “jogar” outra vez, para inteirar-se das regras e verificar se houve algum detalhe não percebido.
A relação espectador/filme, de fruição coletiva a partir de uma única fonte, o aparato tecnológico, repete-se na relação dos jogadores de eXistenZ, acrescentando, todavia, um teor mais erótico. Aqui o jogo só pode ser acionado com, pelo menos, dois participantes. Assim como no espetáculo cinematográfico, o jogo representa coletividade. Só que a socialização aqui se dá fisicamente. Os participantes precisam ser conectados a uma central do jogo através de uma espécie de cordão umbilical (UmbyCord). Esse centro de controle do jogo (game pod) é concebido como um pedaço orgânico de carne, em cor, textura, forma e interior com mamilos excitáveis, feitos de DNA sintético e órgãos também sintéticos obtidos nas tais “fazendas” de órgãos. O jogo incide diretamente sobre a memória, ansiedades e preocupações dos jogadores. O jogo ganha a força de personagem humana. Sua criadora, a designer Alegra Geller (Jennifer Jason Leigh), tem por ele uma relação muito especial, marcada por afetividade e carinho. Ela deseja eXistenZ. Submete-se ao jogo de forma ostensivamente erotizada. Alegra carrega o jogo carinhosamente para a cama e, deitada—em estado de entrega, imóvel e passiva—deixa-se levar pelas fabulações lúdicas.[4] O jogo possui o corpo dos participantes como um vírus ou uma doença que gera o vício. Os jogadores aparecem em um local que lembra um centro de apoio a drogados, algo como uma igreja onde acontecem essas reuniões. Cronenberg repete aqui o mesmo clima de culto que já apresentara em Videodrome, onde o espaço do gerador dos sinais das mensagens hipnóticas, a Missão do Raio Catódico, também parecia um templo religioso ou, ainda, em Na hora da zona morta (Dead Zone, 1983) quando Christopher Walken mostra o candidato a presidente.[5] Cronenberg explica que evitou em eXistenZ qualquer ambiente ou objeto que normalmente estariam associados a filmes de ficção científica, como laboratórios, telas de computadores, ambientes urbanos hightech e frios. Proibiu uso de tênis, relógios e jóias. As roupas deveriam ser lisas. Criou um modelo de ficção científica baseado em subtração e não no uso de objetos codificados pelo gênero. (JOYARD & TESSON, 1999: 69). Buscou distanciamento em ambientes campestres e interiores com materiais naturais como madeira, a exemplo do templo citado no início do filme, onde o jogo nos é apresentado pela primeira vez e também no final da película. Os ambientes, assim, são simples e muito orgânicos. Vêem-se chalés com mesas toscas, tecidos de aspecto doméstico, utensílios prosaicos e bastante vegetação, como no caso da “fazenda de trutas” ou no restaurante oriental. Esse afastamento da estética de ficção-científica a que estamos acostumados faz com que eXistenZ pareça, a nosso ver, mais próximo do espectador e, por isso mesmo, incomoda mais ao possibilitar um discurso crítico sobre o presente. Por outro lado, há semelhanças com outros clássicos de ficção-científica do cinema moderno, como Alphaville, de Godard (1965) ou Fahrenheit 451, de Truffaut (1966), que emprestam a eXistenZ um clima ambíguo. Com relação a Fahrenheit 451, eXistenZ surpreende ao repetir a frieza azulada que dá o tom da fuga do casal principal pela estrada em meio à floresta, reminiscência da paisagem moderna e depressiva por onde circulavam as personagens de Julie Christie e do bombeiro Oskar Werner no filme de Truffaut. Jean-Marie Lalanne relaciona tal luz à que Tourneur emprega em Pendez-moi haut et court, Vandou, que apresenta um tom ao mesmo tempo idílico e ameaçador (LALANNE, 1999: 65).
A distância entre a iconografia de eXistenZ, seus espaços de representação e o presente do espectador, é mínima ou quase imperceptível. Ted Pikul (Jude Law), o suposto guarda-costas da também suposta e célebre designer de jogos eletrônicos, Alegra Geller, projeta um perfil de um tipo de espectador bastante próximo da platéia, com suas dúvidas e hesitações. Entretanto, por trabalhar clichês e imagens cotidianas de forma ostensiva, às vezes o filme induz a um distanciamento, como na seqüência onde surge a necessidade de se abrir um "bioporto" no corpo do guarda-costas, “operação que pode ser efetuada, ainda que ilegalmente, em qualquer local gas station (posto de gasolina de vizinhança),” sentença que é dita pela personagem e literalizada na imagem imediatamente após, quando surge o posto chamado exatamente Local Gas Station.[6] Tal estratégia aponta para um contraditório processo de desnaturalização da narrativa, fazendo com que o jogo proposto de construção de mundos virtuais torne-se constantemente reflexivo, pondo à mostra seus processos de significação. Por essa mesma via, mais adiante, as personagens comentam suas próprias narrativas e, como em um jogo de RPG, enfatizam aspectos voltados exclusivamente para uma definição daquilo que é "humano" no comportamento, ou comentam sua atuação, diálogos e sotaques. Ted Pikul, que antes se expressava num sotaque canadense, termina o filme com um sotaque britânico.
eXistenZ acaba por alegorizar um momento intermediário—e por isso mesmo bem mais próximo de nós do que outros filmes de ficção-científica, como Matrix (1999), O 13 andar (The Thirteenth Floor, 1999) ou Cidade das sombras (Dark City, 1998) —momento onde, apesar de já estarmos vivenciando uma crise do corpo em processo de transformação, enquanto signo ele ainda permanece central às operações do capitalismo pós-industrial, nada supérfluo enquanto objeto. O corpo aqui não é apenas uma figura retórica, ele é essencial ao funcionamento autônomo de uma tecno-paisagem virtual, inclusive em processo de interação com outros corpos. Ao contrário de outros filmes onde o inconsciente projetado no jogo narrativo é radicalmente tecnológico, eXistenZ trata de uma espécie de utopia tecnológica mais orgânica e, por que não, ecológica, reciclável, biodegradável. Aparentemente seria um mundo menos poluído ao contrário, por exemplo, de Blade Runner, o caçador de andróides (1982). No filme canadense as personagens plugam-se umas às outras através de uma espécie de cordão umbilical ligado, por sua vez, ao controle do jogo, ostensivamente projetado para ser uma extensão mesma de um novo órgão do corpo humano, completo em sua materialidade, textura e volume carnais.
Os efeitos especiais do filme voltam-se mais à construção de novos objetos e "animais" e sua visualização pressupõe uma reconfiguração do corpo humano e uma nova relação do sujeito com esses objetos. O próprio Cronenberg faz referência à “nova carne” com relação a Videodrome e eXistenZ. (RODLEY, 1999: 9) Contudo, essa relação de diferentes matérias, ora em amálgama ora em contraste, se faz também presente em filmes anteriores. Tanto em Gêmeos, mórbida semelhança quanto em Crash (1996), tal relação aparece em oposição uma à outra, como se houvesse nas diferentes naturezas um choque óbvio, traduzido no horror da tortura ou do sado-masoquismo. Já em Mistérios e paixões, as alucinações da personagem do escritor (Peter Weller) combinam material inorgânico (máquina de escrever) com matéria orgânica (inseto). Em A mosca vemos que a junção de matérias orgânicas é mais harmônica, mas de espécies diferentes (animal e humana). Nessa tendência, a junção de duas matérias orgânicas de espécies diferentes parecem ainda mais integradas em eXistenZ.
Em Videodrome e eXistenZ o redesenho do corpo e a naturalização do efeito são condições essenciais para se deslanchar a(s) narrativa(s). No caso de eXistenZ, o novo corpo se faz a partir da necessidade de instalação do bioporto e da penetração do plug do UmbyCord. Para Ted Pikul, identificado com a platéia, a instalação do bioporto em seu corpo acontece em um clima de desconforto e representa um certo grau de homofobia, apesar da aparente comicidade da seqüência. A ansiedade da perda da virgindade do corpo íntegro para o corpo-máquina, ainda que orgânica, representa também a passagem para outra natureza, feminilizada. Vale ressaltar que a penetração é executada pela personagem feminina no corpo da personagem masculina, que aqui é a parte virgem e passiva, demonstrando um visível propósito de apagamento de papéis sexuais tradicionais.[7]
A transformação da matéria orgânica, que implica uma alteração da subjetividade e da objetividade, do espaço e do tempo vem acompanhada a uma desestruturação da “voz” do autor, uma das marcas do paradigma narrativo clássico. Afinal o que está acontecendo ali diante de nossos olhos é um ponto de vista de quem? Quem narra o filme? Qual é a realidade? Onde começa e termina o jogo? Onde e quando acontece? Aquilo realmente acontece? Com eXistenZ, Cronenberg desloca continuamente o realismo da certeza ontológica do cinema e da fotografia enquanto meios perfeitos de registro da realidade pró-fílmica para a incerteza total das novas imagens virtuais e sua fruição durante o tempo real de projeção do filme, na situação mesma da sala de cinema. Ele cria ambigüidades constantes com relação ao estatuto da imagem “real” cinematográfica, agora completamente não confiável. Cronenberg jamais mitifica o significante cinematográfico enquanto “real”, mas continuamente confunde o real com a imagem e a imagem com as alucinações do jogo. As passagens de uma “realidade” a outra não obedecem às convenções da causalidade narrativa. Salta de uma dimensão a outra e recomeça. A direção do olhar é que costuma fazer a transição. O contra-campo já é a outra realidade.[8]
Há em eXistenZ mudanças perceptíveis no vestuário e nos cabelos entre um nível de referência e outro, mas praticamente não há diferenças de linguagem, nem qualquer sistema “racional” que sirva para mapear as passagens entre o nível “real” e o “virtual”. Cada seqüência é apresentada como “real”, isto é, correspondendo às convenções de uma representação realista. Mas onde começa e termina o feixe de narrativas é uma questão em aberto. A(s) narrativa(s) se desenrola (m) como uma estrutura imaginária, que acontece no tempo real da projeção do filme onde se situa o espectador, imóvel na sala de projeção, vivendo e se relacionando com outras realidades. Ele é levado a acreditar em tudo e em nada ao mesmo tempo. A realidade é passível de várias interpretações e, como tal, é apresentada como mera representação e fruto ideológico. Um forte conteúdo ideológico permeia tanto Videodrome e Scanners quanto eXistenZ. Há nos três filmes complôs de companhias privadas (Scanners e eXistenZ) ou de concorrentes ou fanáticos (em Videodrome e eXistenZ) pelo domínio ou destruição de certa tecnologia. No caso de eXistenz, a luta ideológica gira em torno da própria questão realista. Os fanáticos e terroristas defendem o realismo do mundo contra os criadores e fabricantes dos jogos, que devem ser destruídos “por deformarem a realidade.” A apropriação desse desenvolvimento por parte de interesses políticos conduz a narrativa nos três casos.[9]
Em eXistenZ, a narrativa principal é simultaneamente aberta e fechada, no sentido em que parece ter iniciado muito antes do filme começar e que se estenderá bem depois do final da projeção, numa espécie de vida completamente autônoma, onde todos são personagens de um mundo onde nada é real, mas tudo é. Nesse particular, eXistenZ parece descender da linhagem narrativa de Bioy Casares/Robe-Grillet-Alain Resnais em A invenção de Morel/O ano passado em Marienbad (1961).[10]
O efeito é desconcertante para todos nós, espectadores educados e formados nas certezas da narração clássica. Ainda mais por que, até um certo momento, parece que estamos assistindo a um desfilar de imagens que organizam uma narrativa onde o sujeito parece não se encontrar separado de seu campo de controle, podendo até desplugar-se de seu bioporto. Tanto a designer de jogos quanto seu companheiro guarda-costas parecem continuar existindo como "pilotos" do jogo narrativo, ou seja, o filme parece afirmar a reconquista de nossa autonomia em poder controlar a navegação dentro daqueles mundos—ainda que como personagens desse próprio mundo. eXistenZ parece posicionar um novo sujeito que constrói e vivencia narrativas ao associar a percepção à sinestesia, num tipo de formulação muito próxima daquela descrita pela fenomenologia merleaupontiana, ou seja, um processo de percepção fisionômica que cria, em torno do sujeito, um mundo que fala do sujeito para o sujeito e, assim, localiza seus próprios pensamentos no mundo. Só que, contraditoriamente, também parece um cinema que constrói um discurso francamente anti-racional—uma tentativa de expor e ridicularizar qualquer processo de “esclarecimento” que possa ocorrer no exercício da razão “pura”. Um cinema que celebra um sistema de imagens alucinatório e visceral.
O mundo de eXistenZ é um mundo pré-figurado como simulacro onde um novo sujeito parece ter sido criado: um sujeito que situa o humano e o tecnológico como coexistentes, co-dependentes e que mutuamente se definem. Ele é simultaneamente constituído pela biotecnologia e pelas maquinações do texto, produzido no ponto de interseção entre tecnologia e narração onde um constrói o outro, num círculo vicioso, ovo e galinha, interior e exterior. Tanto Videodrome quanto eXistenZ trazem uma representação gráfica da dissolução da vida real no virtual—o que Baudrillard nomeia de “viral”, no sentido de equacionar imagem com vírus.[11] Os dois filmes literalizam essa equação na medida em que o corpo é invadido, penetrado pela imagem que, como um vírus, se espalha indefinidamente, num cérebro de aparente vida própria que produz mais e novas seqüências de imagens. Corpo e imagem se fundem, tornam-se uma única (id)entidade, numa dissolução completa entre o real e sua representação, entre as fronteiras que delimitavam o interior do exterior. Não há mais qualquer resquício de proteção privada onde o próprio corpo não consegue mais encobrir a individualidade do sujeito. Ele encontra-se ameaçado por estruturas centralizadas de controle, pela biotecnologia, que, simultaneamente, aliena e mascara a alienação pela percepção de sua própria impotência. Daí o medo e a revolta que toma conta dos guerrilheiros do realismo que, mesmo enquanto personagens virtuais, ainda têm força para lutar e gritar “morte ao videodrome!” no filme de 1983 ou “morte a Alegra Geller!” em eXistenZ.
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