Resumo:
A relação do escritor com o seu leitor na produção literária virtual implica a reestruturação de coordenadas já apreendidas e a consciencialização de que a posição de cada um dos intervenientes e a influência que cada um exerce sobre o outro se alterou substancialmente.As novas tecnologias obrigam-nos a adoptar novos métodos de análise e a rever o papel de cada um dos intervenientes no processo de (re)produção e (re)leitura da obra literária virtual.
Autor(-a/s):
Filipa Maria Valido-Viegas de Paula-Soares
Texto da comunicação:
0. Escrever sobre a relação do escritor com o seu leitor na produção literária virtual implica a reestruturação de coordenadas já apreendidas e a consciencialização de que a posição de cada um dos intervenientes e a influência que cada um exerce sobre o outro se alterou substancialmente.
1. Antes da existência do processo de virtualização literária e do domínio do hipertexto como elemento determinante num novo contexto de produção-recepção da obra, podíamos afirmar que a génese do texto em si correspondia a um aparente vazio comunicativo entre ambos.
O papel do escritor era determinante na construção imagética do mundo; na verdade, só ele possuía essa capacidade demiurga de projectar o mundo real imaginário ao qual ninguém tinha acesso e que, portanto, impossibilitava a interacção entre o emissor e o receptor do texto.
O escritor e a obra literária surgiam-nos como elementos coarctivos do triângulo comunicativo que só aparentemente se estabelecia entre ambos e o seu interlocutor imediato, ou seja, o receptor/leitor da obra. Isto remete-nos para o artigo de Fernando Lázaro Carreter, intitulado La literatura como fenómeno comunicativo, onde o autor sublinha que a característica única e inerente ao acto literário e cujo âmbito de actuação espacial e temporal se encontra explicitamente definido em oposição ao evento literário é utópico e ucrónico (LÁZARO CARRETER, 1999).
Podemos deste modo afirmar que o trabalho de produção literária do escritor resume-se a um acto solitário, eremítico, ausente de comunicação com o exterior desde uma perspectiva imediata, onde impera a ausência de um interlocutor directo o qual não está presente no acto da escrita nem reverte de forma consecutiva para o próprio emissor.
1.1. No desempenho tradicional do acto de escrita, cujo suporte material radica na publicação material do livro, o acto comunicativo da obra é centrífugo. Visa-se a transmissão unidireccional de um conteúdo temático que se pretende tornar ambivalente e gerador de sentidos pluridireccionais. Ora, todos sabemos que o estabelecimento de uma situação de retorno comunicativo é impossível. A figura e o papel preponderante do leitor surgem apenas como factores indispensáveis à formalização do carácter comunicativo da obra literária mas não determinantes do acto de criação em si.
A obra literária não se pode definir, até ao aparecimento da literatura virtual, como uma realidade mutante, dependente da interacção existente entre o autor e o seu leitor. A estrutura linguística da obra literária, em termos clássicos, é invariável no fundo e na forma a partir do momento da sua redacção. A obra literária não virtual comporta o seu próprio contexto na medida em que a mensagem literária remete essencialmente para si.
1.2 Podemos afirmar que o texto impresso, em oposição ao texto electrónico, acentua o distanciamento entre o autor e o leitor. As palavras do primeiro dificilmente são contestáveis e qualquer reacção passível de alteração é sempre indeferida dado o controle absoluto existente sobre os textos.
Assim sendo, o leitor não virtual apresenta-se como entidade apática que desenvolve uma atitude amorfa perante o texto. Contudo, não obstante a postura intransitiva latente, ele constitui um elemento imprescindível no esquema da produção literária pois só ele pode detonar o processo comunicativo inerente à obra.
Queremos com isto afirmar que a obra literária só existe enquanto tal a partir do momento em que activamos o processo de transacção estética, como afirma Aguiar e Silva, o qual pressupõe a existência de um receptor que possibilita a compreensão de todo o acto de representação interiorizado e, consequentemente, exteriorizado em todo o processo criativo (AGUIAR E SILVA, 1998).
Partimos, deste modo, do princípio que todo e qualquer fenómeno artístico-literário, independentemente do processo catártico que para o autor possa representar, define-se como um fenómeno comunicativo que implica o reconhecimento da linguagem como sistema comunicativo. A arte em termos latos e o texto literário em particular são elementos afins à necessidade de conhecimento inerente ao homem.
2. A diferença existente entre a literatura não virtual e a literatura virtual reside no posicionamento que todos os elementos deste processo comunicativo assumem enquanto indivíduos que lutam pela procura da verdade que lhes é necessária à vida.
A linearidade textual desaparece na literatura virtual, o corpus textual esvai-se no tempo, visto que a continuidade da escrita e da leitura se realiza mediante interrupções. As experiências hipertextuais reorganizam a posição do autor perante o seu leitor. Num sentido bartheniano poder-se-ia afirmar que o hipertexto liberta o texto da tirania autorial na medida em que abre as portas à produção colectiva. Significa isto que a literatura virtual reorganiza e reconfigura o postulado do autor enquanto elemento único na produção literária.
Barthes no seu estudo A Morte do Autor profetiza aquilo que a literatura virtual vai concretizar: a metamorfose do acto de escrita. A literatura virtual implica um contínuo devir do próprio processo criativo, porque os elementos constituintes deste acto estão em permanente construção e renegociação (ROLAND BARTHES, 1983).
3. O leitor virtual passa a escolher livremente os seus trajectos de leitura, condenando desta forma o discurso tradicionalmente lógico, encerrado em si mesmo. Abrem-se infinitas possibilidades de escolha, as conexões imediatas a outros textos ou partes de textos flexibilizam as fronteiras entre as diferentes áreas do conhecimento humano e viabilizam a inversão do papel do leitor. Cada leitura pode significar a reescrita de um texto, as interpretações resultantes da leitura podem induzir agora a uma reestruturação imediata do próprio texto. Na narrativa hipertextual o leitor é participe da construção textual porque perante o texto eles constroem sucessões interpretativas independentes das do autor mas que com elas interagem. Como afirmou Heim, o leitor assume um papel activo que o transforma, simultaneamente, em leitor e co-autor (MICHAEL HEIM, 1987).
3.1. Esta nova postura do leitor perante a produção literária virtual gera indubitavelmente novas formas de leitura e de escrita. A figura deste reveste-se de uma importância até agora inexistente, a possibilidade aleatória subjacente agora ao acto de leitura, possibilita-lhe a criação de um novo sentido ao texto inicialmente proposto. As vozes multiplicam-se e a personalidade integral e individual do autor dilui-se neste processo. Os poderes de controlo até então de domínio exclusivo do autor desaparecem, ou se preferirmos, deslocam-se do autor para o leitor.
3.2. A virtualidade da escrita assume duas vertentes: por outro lado, o livro deixa de exercer o poder que anteriormente tinha, perde o seu carácter doutrinal; e, por outro lado, torna-se um veículo de comunicação colectivo na medida em que transforma o seu público-alvo co-produtor da realidade virtual criada. Poder-se-á afirmar que a interactividade é a partir deste momento o motor central de um novo princípio estético. Visa-se a criação de verdadeiras comunidades virtuais onde todos têm uma palavra a dizer, onde como afirma Theodor Nelson a escrita se converte num processo não sequencial com elos definidos e controlados pelo leitor. É precisamente este último argumento que condena de forma irremediável a lógica narrativa e argumentativa do texto, pondo fim à posição de subserviência do leitor perante o escritor (THEODOR NELSON, 1973).
3.3 O leitor pode transformar-se agora num adversário aguerrido do autor, conduzindo o texto para uma direcção não prevista por ele inicialmente. A literatura virtual é presentemente mais vulnerável e encontra-se, por vezes, subjugada aos critérios selectivos do leitor. Significa isto que o princípio de exterioridade inerente à realidade virtual e consequentemente à literatura virtual projecta uma abertura permanente do conhecimento em contínua transformação.
Como afirma Lévy, deixa de existir a realidade puramente interna, a visão projecta-se não de dentro para fora mas antes no sentido inverso, ou nem isso, vive-se num momento operativo sem fronteiras onde os limites não estão definidos (LÉVY, 2000). O hipertexto organiza-se de forma fraccionária, fragmentada, que se revela como um composto em rede segundo uma escala de graus de precisão e de influência. Podemos afirmar que os suportes de leitura e de escrita se alteraram, o culto ao livro tal como o concebemos hoje em dia transformou-se, o pensamento escrito não virtual perdeu o seu carácter permanente, intocável e duradoiro. Estamos perante um momento de ruptura dos códigos estabelecidos que ocorrem do confronto operado pelos novos dispositivos técnicos os quais, por seu turno, transformaram a prática da leitura e da escrita perante as novas modalidades de publicação. A partir de agora, o leitor passa-se a insinuar no espaço da escrita e a nela inscrever-se não clandestinamente ou sub-repticiamente nas margens do livro onde desempenhava um papel periférico para passar a influir na estrutura textual em si. Autores como Chartier defendem que a revolução electrónica representa a revolução integral da escrita e da leitura porque este meio obrigou ao abandono, por parte dos escritores e dos leitores contemporâneos, da concepção clássica do acto de escrita e da função de cada um deles na literatura. (ROGER CHARTIER, 1999)
4. A publicação digital e a criação do hipertexto representam a abertura de um sistema fechado a qualquer pessoa que queira escrever e ou reescrever livremente um texto. Além do mais, o leitor torna-se na comunicação digital, como já mencionámos anteriormente, num ser livre. O leitor projecta agora a sua co-autoria de um livro nunca acabado, mas antes em permanente transformação mediante os seus comentários e intervenções. O mundo da comunicação electrónica transforma-se no mundo da super produção textual e da plena interacção.
4.1. A literatura digital nestes termos reflecte o pensamento kantiano de comunicação escrita como espaço de intercâmbio entre os ausentes, a priori, do processo criativo e o seu criador, o que, consecutivamente, gera o surgimento de um espaço autónomo que permite o debate das ideias. Ler é na realidade virtual sinónimo de escrever e vice-versa porque a leitura se torna em si e por si um acto de escrita latente.
O processo de leitura e de escrita colectiva que a comunicação digital em geral e a literatura em particular proporcionam viabilizam a interacção entre autores e escritores. Este procedimento obriga-nos como afirma Jorge Larrosa "a aprender a viver de outro modo, a pensar de outro modo, a falar de outro modo, a ensinar de outro modo" (LARROSA, J. citado em http:// www.unesp.br).
Apesar das inegáveis vantagens que podemos encontrar num hipertexto, algumas dúvidas se nos colocam ao nível da construção ficcional de uma narrativa. O carácter descontínuo a que um leitor pode submeter a obra literária hipertextual permite a criação de várias perspectivas também elas descontínuas que lhe abrem um conjunto impar de segmentos narrativos que originarão por si só novos conteúdos narrativos. Assim sendo, o leitor, detentor de uma liberdade narrativa absoluta e de acordo com o percurso por si próprio escolhido poderá encontrar-se com novas histórias de todo parecidas à inicialmente escrita.
Poder-se-á afirmar que esta possibilidade de escolha dada ao leitor liberta-o, por um lado, de preconceitos preestabelecidos mas por outro lado, corre-se o risco de faltar ao texto inicial, desprovendo-o do sentido original. Porém, gostemos ou não, queiramos ou não, estamos numa fase de transição onde o leitor tem um lugar significativo, ele torna-se parte do processo criativo, situa-se ao mesmo nível do autor, ultrapassando-o porque o obriga a tornar-se participe da sua história, viabilizando o terceiro mandamento dos direitos do leitor que se resume ao direito de não acabar um livro ou pelo menos de o acabarmos à nossa maneira porque "o grande romance que se nos resiste, não [significa que seja] necessariamente mais difícil do que qualquer outro… há entre ele – por maior que seja – e nós – por mais aptos que estejamos a «compreendê-lo» uma reacção química que não resulta" (PENNAC, 1993).
Como afirma José Augusto Mourão no seu trabalho Para uma poética do hipertexto: "a poética do hipertexto é essencialmente uma poética da leitura" onde se nos coloca o problema da ética da leitura face ao processo criativo da escrita (MOURÃO,2001).
5. Na Ciberliteratura o computador funciona como uma máquina aberta onde o processamento de entrada (input) da informação varia face ao seu modo de saída (output). Não estamos perante um circuito fechado do acto criativo e consequentemente não passível de manipulação. Antes pelo contrário, o tratamento processual que o computador efectua no trabalho conceptualmente pensado provoca uma profunda alteração no que concerne o processo criativo. O artista concebe um modelo de obra a realizar que, posteriormente, o computador executa e, a partir deste momento, abre-se um campo de leitura que contém inúmeras possibilidades de realização textual praticamente infinitas.
5.1 O texto-matriz inicialmente criado vai dar origem a um campo mais ou menos vasto de possibilidades interpretativas e criativas. O texto virtual cria um campo de leitura vastíssimo que permite a execução múltipla de novos textos e de novos sentidos. Este novo processamento textual altera o circuito do processo de escrita convencional no que diz respeito ao processo de criação, ao suporte, ao meio de divulgação, entenda-se à circulação do texto final.
Podemos afirmar que no procedimento ciberliterário o acto criativo se cinge a dois momentos concretos da produção a saber: o da concepção da obra efectuada pelo artista e o da execução da mesma realizada pela máquina. A partir deste momento, o texto desprende-se do executor primeiro para submergir-se numa pluralidade de significados dependentes, em parte ou na sua totalidade, da atitude receptiva do leitor.
O percurso literário primário altera-se radicalmente nos seus múltiplos componentes, produz-se uma inversão de valores na relação autor-leitor, autor-texto, texto-leitor e na concepção de texto como obra finita.
A obra passa a ser encarada como o epicentro textual gerador de sentidos e concludentemente de variadas realidades textuais não previstas inicialmente pelo criador autorial.
O computar surge deste modo como um amplificador do acto criativo que permite uma contínua actualização do texto virtual, transformando-o numa obra aberta, quer dizer, projectando o autor de uma maneira simbiótica.
6. Pode-se afirmar que esta nova realidade virtual da literatura bule não só com o ponto de vista do autor mas também e principalmente com a posição do leitor face ao texto criado. O texto deixa de ter uma perspectiva de leitura única para passar a ser encarado como um texto em permanente processo de actualização. A interactividade inerente a esta nova realidade no que concerne o momento de recepção textual conduz a uma inversão do domínio relacional autor-leitor. Este último passa a ter um papel preponderante no resultado final do texto. A sua acção, mais ou menos participativa, implica a entrada num processo de reescrita mediante a leitura que compreende o presenciar de um novo papel a desempenhar pelo leitor.
Por outras palavras, o texto virtual transforma-se numa nova estrutura de signos que recombinados entre si possibilitam o surgimento de novas realidades textuais completamente inovadoras. O acto de concepção autorial varia ou, se preferirmos, amplia-se pois transforma o finito em infinito. A nova realidade virtual textual, a ciberliteratura, abre caminho a uma infinidade de textos, todos eles diferentes entre si, activando a função até agora passiva do acto de leitura. Estamos perante uma nova realidade, uma nova concepção de literatura que bule com o acto criativo em si e que poderá originar o aparecimento de um novo género literário assente na multiplicidade interpretativa que conduz a uma metamorfose textual ininterrupta. A obra vê-se agora obrigada a assumir um papel de abertura que implica a existência de um utilizador/leitor que lhe dê existência verbal, independentemente da vontade do criador da obra.
Ficção ou realidade? Novo género literário ou não? Quer queiramos quer não estamos perante uma nova concepção do acto de escrita mas estamos fundamentalmente perante uma nova concepção do acto de leitura onde se coloca o saber do utente/leitor ao serviço do texto e do autor. As nossas releituras conduzem a um processo de reescrita em permanente evolução onde o aparente sentido de permanência conduz ao encontro de novos deslumbramentos, logo, novos campos possíveis de realidades textuais.
1. Antes da existência do processo de virtualização literária e do domínio do hipertexto como elemento determinante num novo contexto de produção-recepção da obra, podíamos afirmar que a génese do texto em si correspondia a um aparente vazio comunicativo entre ambos.
O papel do escritor era determinante na construção imagética do mundo; na verdade, só ele possuía essa capacidade demiurga de projectar o mundo real imaginário ao qual ninguém tinha acesso e que, portanto, impossibilitava a interacção entre o emissor e o receptor do texto.
O escritor e a obra literária surgiam-nos como elementos coarctivos do triângulo comunicativo que só aparentemente se estabelecia entre ambos e o seu interlocutor imediato, ou seja, o receptor/leitor da obra. Isto remete-nos para o artigo de Fernando Lázaro Carreter, intitulado La literatura como fenómeno comunicativo, onde o autor sublinha que a característica única e inerente ao acto literário e cujo âmbito de actuação espacial e temporal se encontra explicitamente definido em oposição ao evento literário é utópico e ucrónico (LÁZARO CARRETER, 1999).
Podemos deste modo afirmar que o trabalho de produção literária do escritor resume-se a um acto solitário, eremítico, ausente de comunicação com o exterior desde uma perspectiva imediata, onde impera a ausência de um interlocutor directo o qual não está presente no acto da escrita nem reverte de forma consecutiva para o próprio emissor.
1.1. No desempenho tradicional do acto de escrita, cujo suporte material radica na publicação material do livro, o acto comunicativo da obra é centrífugo. Visa-se a transmissão unidireccional de um conteúdo temático que se pretende tornar ambivalente e gerador de sentidos pluridireccionais. Ora, todos sabemos que o estabelecimento de uma situação de retorno comunicativo é impossível. A figura e o papel preponderante do leitor surgem apenas como factores indispensáveis à formalização do carácter comunicativo da obra literária mas não determinantes do acto de criação em si.
A obra literária não se pode definir, até ao aparecimento da literatura virtual, como uma realidade mutante, dependente da interacção existente entre o autor e o seu leitor. A estrutura linguística da obra literária, em termos clássicos, é invariável no fundo e na forma a partir do momento da sua redacção. A obra literária não virtual comporta o seu próprio contexto na medida em que a mensagem literária remete essencialmente para si.
1.2 Podemos afirmar que o texto impresso, em oposição ao texto electrónico, acentua o distanciamento entre o autor e o leitor. As palavras do primeiro dificilmente são contestáveis e qualquer reacção passível de alteração é sempre indeferida dado o controle absoluto existente sobre os textos.
Assim sendo, o leitor não virtual apresenta-se como entidade apática que desenvolve uma atitude amorfa perante o texto. Contudo, não obstante a postura intransitiva latente, ele constitui um elemento imprescindível no esquema da produção literária pois só ele pode detonar o processo comunicativo inerente à obra.
Queremos com isto afirmar que a obra literária só existe enquanto tal a partir do momento em que activamos o processo de transacção estética, como afirma Aguiar e Silva, o qual pressupõe a existência de um receptor que possibilita a compreensão de todo o acto de representação interiorizado e, consequentemente, exteriorizado em todo o processo criativo (AGUIAR E SILVA, 1998).
Partimos, deste modo, do princípio que todo e qualquer fenómeno artístico-literário, independentemente do processo catártico que para o autor possa representar, define-se como um fenómeno comunicativo que implica o reconhecimento da linguagem como sistema comunicativo. A arte em termos latos e o texto literário em particular são elementos afins à necessidade de conhecimento inerente ao homem.
2. A diferença existente entre a literatura não virtual e a literatura virtual reside no posicionamento que todos os elementos deste processo comunicativo assumem enquanto indivíduos que lutam pela procura da verdade que lhes é necessária à vida.
A linearidade textual desaparece na literatura virtual, o corpus textual esvai-se no tempo, visto que a continuidade da escrita e da leitura se realiza mediante interrupções. As experiências hipertextuais reorganizam a posição do autor perante o seu leitor. Num sentido bartheniano poder-se-ia afirmar que o hipertexto liberta o texto da tirania autorial na medida em que abre as portas à produção colectiva. Significa isto que a literatura virtual reorganiza e reconfigura o postulado do autor enquanto elemento único na produção literária.
Barthes no seu estudo A Morte do Autor profetiza aquilo que a literatura virtual vai concretizar: a metamorfose do acto de escrita. A literatura virtual implica um contínuo devir do próprio processo criativo, porque os elementos constituintes deste acto estão em permanente construção e renegociação (ROLAND BARTHES, 1983).
3. O leitor virtual passa a escolher livremente os seus trajectos de leitura, condenando desta forma o discurso tradicionalmente lógico, encerrado em si mesmo. Abrem-se infinitas possibilidades de escolha, as conexões imediatas a outros textos ou partes de textos flexibilizam as fronteiras entre as diferentes áreas do conhecimento humano e viabilizam a inversão do papel do leitor. Cada leitura pode significar a reescrita de um texto, as interpretações resultantes da leitura podem induzir agora a uma reestruturação imediata do próprio texto. Na narrativa hipertextual o leitor é participe da construção textual porque perante o texto eles constroem sucessões interpretativas independentes das do autor mas que com elas interagem. Como afirmou Heim, o leitor assume um papel activo que o transforma, simultaneamente, em leitor e co-autor (MICHAEL HEIM, 1987).
3.1. Esta nova postura do leitor perante a produção literária virtual gera indubitavelmente novas formas de leitura e de escrita. A figura deste reveste-se de uma importância até agora inexistente, a possibilidade aleatória subjacente agora ao acto de leitura, possibilita-lhe a criação de um novo sentido ao texto inicialmente proposto. As vozes multiplicam-se e a personalidade integral e individual do autor dilui-se neste processo. Os poderes de controlo até então de domínio exclusivo do autor desaparecem, ou se preferirmos, deslocam-se do autor para o leitor.
3.2. A virtualidade da escrita assume duas vertentes: por outro lado, o livro deixa de exercer o poder que anteriormente tinha, perde o seu carácter doutrinal; e, por outro lado, torna-se um veículo de comunicação colectivo na medida em que transforma o seu público-alvo co-produtor da realidade virtual criada. Poder-se-á afirmar que a interactividade é a partir deste momento o motor central de um novo princípio estético. Visa-se a criação de verdadeiras comunidades virtuais onde todos têm uma palavra a dizer, onde como afirma Theodor Nelson a escrita se converte num processo não sequencial com elos definidos e controlados pelo leitor. É precisamente este último argumento que condena de forma irremediável a lógica narrativa e argumentativa do texto, pondo fim à posição de subserviência do leitor perante o escritor (THEODOR NELSON, 1973).
3.3 O leitor pode transformar-se agora num adversário aguerrido do autor, conduzindo o texto para uma direcção não prevista por ele inicialmente. A literatura virtual é presentemente mais vulnerável e encontra-se, por vezes, subjugada aos critérios selectivos do leitor. Significa isto que o princípio de exterioridade inerente à realidade virtual e consequentemente à literatura virtual projecta uma abertura permanente do conhecimento em contínua transformação.
Como afirma Lévy, deixa de existir a realidade puramente interna, a visão projecta-se não de dentro para fora mas antes no sentido inverso, ou nem isso, vive-se num momento operativo sem fronteiras onde os limites não estão definidos (LÉVY, 2000). O hipertexto organiza-se de forma fraccionária, fragmentada, que se revela como um composto em rede segundo uma escala de graus de precisão e de influência. Podemos afirmar que os suportes de leitura e de escrita se alteraram, o culto ao livro tal como o concebemos hoje em dia transformou-se, o pensamento escrito não virtual perdeu o seu carácter permanente, intocável e duradoiro. Estamos perante um momento de ruptura dos códigos estabelecidos que ocorrem do confronto operado pelos novos dispositivos técnicos os quais, por seu turno, transformaram a prática da leitura e da escrita perante as novas modalidades de publicação. A partir de agora, o leitor passa-se a insinuar no espaço da escrita e a nela inscrever-se não clandestinamente ou sub-repticiamente nas margens do livro onde desempenhava um papel periférico para passar a influir na estrutura textual em si. Autores como Chartier defendem que a revolução electrónica representa a revolução integral da escrita e da leitura porque este meio obrigou ao abandono, por parte dos escritores e dos leitores contemporâneos, da concepção clássica do acto de escrita e da função de cada um deles na literatura. (ROGER CHARTIER, 1999)
4. A publicação digital e a criação do hipertexto representam a abertura de um sistema fechado a qualquer pessoa que queira escrever e ou reescrever livremente um texto. Além do mais, o leitor torna-se na comunicação digital, como já mencionámos anteriormente, num ser livre. O leitor projecta agora a sua co-autoria de um livro nunca acabado, mas antes em permanente transformação mediante os seus comentários e intervenções. O mundo da comunicação electrónica transforma-se no mundo da super produção textual e da plena interacção.
4.1. A literatura digital nestes termos reflecte o pensamento kantiano de comunicação escrita como espaço de intercâmbio entre os ausentes, a priori, do processo criativo e o seu criador, o que, consecutivamente, gera o surgimento de um espaço autónomo que permite o debate das ideias. Ler é na realidade virtual sinónimo de escrever e vice-versa porque a leitura se torna em si e por si um acto de escrita latente.
O processo de leitura e de escrita colectiva que a comunicação digital em geral e a literatura em particular proporcionam viabilizam a interacção entre autores e escritores. Este procedimento obriga-nos como afirma Jorge Larrosa "a aprender a viver de outro modo, a pensar de outro modo, a falar de outro modo, a ensinar de outro modo" (LARROSA, J. citado em http:// www.unesp.br).
Apesar das inegáveis vantagens que podemos encontrar num hipertexto, algumas dúvidas se nos colocam ao nível da construção ficcional de uma narrativa. O carácter descontínuo a que um leitor pode submeter a obra literária hipertextual permite a criação de várias perspectivas também elas descontínuas que lhe abrem um conjunto impar de segmentos narrativos que originarão por si só novos conteúdos narrativos. Assim sendo, o leitor, detentor de uma liberdade narrativa absoluta e de acordo com o percurso por si próprio escolhido poderá encontrar-se com novas histórias de todo parecidas à inicialmente escrita.
Poder-se-á afirmar que esta possibilidade de escolha dada ao leitor liberta-o, por um lado, de preconceitos preestabelecidos mas por outro lado, corre-se o risco de faltar ao texto inicial, desprovendo-o do sentido original. Porém, gostemos ou não, queiramos ou não, estamos numa fase de transição onde o leitor tem um lugar significativo, ele torna-se parte do processo criativo, situa-se ao mesmo nível do autor, ultrapassando-o porque o obriga a tornar-se participe da sua história, viabilizando o terceiro mandamento dos direitos do leitor que se resume ao direito de não acabar um livro ou pelo menos de o acabarmos à nossa maneira porque "o grande romance que se nos resiste, não [significa que seja] necessariamente mais difícil do que qualquer outro… há entre ele – por maior que seja – e nós – por mais aptos que estejamos a «compreendê-lo» uma reacção química que não resulta" (PENNAC, 1993).
Como afirma José Augusto Mourão no seu trabalho Para uma poética do hipertexto: "a poética do hipertexto é essencialmente uma poética da leitura" onde se nos coloca o problema da ética da leitura face ao processo criativo da escrita (MOURÃO,2001).
5. Na Ciberliteratura o computador funciona como uma máquina aberta onde o processamento de entrada (input) da informação varia face ao seu modo de saída (output). Não estamos perante um circuito fechado do acto criativo e consequentemente não passível de manipulação. Antes pelo contrário, o tratamento processual que o computador efectua no trabalho conceptualmente pensado provoca uma profunda alteração no que concerne o processo criativo. O artista concebe um modelo de obra a realizar que, posteriormente, o computador executa e, a partir deste momento, abre-se um campo de leitura que contém inúmeras possibilidades de realização textual praticamente infinitas.
5.1 O texto-matriz inicialmente criado vai dar origem a um campo mais ou menos vasto de possibilidades interpretativas e criativas. O texto virtual cria um campo de leitura vastíssimo que permite a execução múltipla de novos textos e de novos sentidos. Este novo processamento textual altera o circuito do processo de escrita convencional no que diz respeito ao processo de criação, ao suporte, ao meio de divulgação, entenda-se à circulação do texto final.
Podemos afirmar que no procedimento ciberliterário o acto criativo se cinge a dois momentos concretos da produção a saber: o da concepção da obra efectuada pelo artista e o da execução da mesma realizada pela máquina. A partir deste momento, o texto desprende-se do executor primeiro para submergir-se numa pluralidade de significados dependentes, em parte ou na sua totalidade, da atitude receptiva do leitor.
O percurso literário primário altera-se radicalmente nos seus múltiplos componentes, produz-se uma inversão de valores na relação autor-leitor, autor-texto, texto-leitor e na concepção de texto como obra finita.
A obra passa a ser encarada como o epicentro textual gerador de sentidos e concludentemente de variadas realidades textuais não previstas inicialmente pelo criador autorial.
O computar surge deste modo como um amplificador do acto criativo que permite uma contínua actualização do texto virtual, transformando-o numa obra aberta, quer dizer, projectando o autor de uma maneira simbiótica.
6. Pode-se afirmar que esta nova realidade virtual da literatura bule não só com o ponto de vista do autor mas também e principalmente com a posição do leitor face ao texto criado. O texto deixa de ter uma perspectiva de leitura única para passar a ser encarado como um texto em permanente processo de actualização. A interactividade inerente a esta nova realidade no que concerne o momento de recepção textual conduz a uma inversão do domínio relacional autor-leitor. Este último passa a ter um papel preponderante no resultado final do texto. A sua acção, mais ou menos participativa, implica a entrada num processo de reescrita mediante a leitura que compreende o presenciar de um novo papel a desempenhar pelo leitor.
Por outras palavras, o texto virtual transforma-se numa nova estrutura de signos que recombinados entre si possibilitam o surgimento de novas realidades textuais completamente inovadoras. O acto de concepção autorial varia ou, se preferirmos, amplia-se pois transforma o finito em infinito. A nova realidade virtual textual, a ciberliteratura, abre caminho a uma infinidade de textos, todos eles diferentes entre si, activando a função até agora passiva do acto de leitura. Estamos perante uma nova realidade, uma nova concepção de literatura que bule com o acto criativo em si e que poderá originar o aparecimento de um novo género literário assente na multiplicidade interpretativa que conduz a uma metamorfose textual ininterrupta. A obra vê-se agora obrigada a assumir um papel de abertura que implica a existência de um utilizador/leitor que lhe dê existência verbal, independentemente da vontade do criador da obra.
Ficção ou realidade? Novo género literário ou não? Quer queiramos quer não estamos perante uma nova concepção do acto de escrita mas estamos fundamentalmente perante uma nova concepção do acto de leitura onde se coloca o saber do utente/leitor ao serviço do texto e do autor. As nossas releituras conduzem a um processo de reescrita em permanente evolução onde o aparente sentido de permanência conduz ao encontro de novos deslumbramentos, logo, novos campos possíveis de realidades textuais.
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